02 janeiro 2012

"DOS 153 MAIORES CONFLITOS NO MUNDO, 146 OCORREM DENTRO DE ESTADOS" - Christina Stephano de Queiroz

Diretor da Aliança das Civilizações na ONU critica teoria do choque permanente entre povos.

Na enxurrada de matérias feitas sobre o mundo muçulmano nos últimos tempos, não é raro encontrar jornalistas que se apoiam na teoria do choque de civilizações para explicar sua relação com o Ocidente. Alvo de controvérsias, o livro "O choque das civilizações e a recomposição da ordem mundial", publicado pelo estadunidense Samuel P. Huntington em 1997, defende que as diferentes identidades culturais e religiosas dos povos são os principais motivos dos conflitos no mundo após a queda do muro de Berlim. 

Em entrevista exclusiva, Marc Scheuer, diretor do programa Aliança das Civilizações das Nações Unidas (Unaoc) explica que, embora adotada por diferentes intelectuais e meios de comunicação, a teoria de Huntington apresenta falhas. Ele afirma que ela é irreal por considerar os povos entidades monolíticas que possuem um projeto político único e imutável. 

Brasil de Fato — Por que a famosa teoria de Huntington não serve para explicar as relações entre Ocidente e mundo muçulmano? 

Marc Scheuer — Ela ignora que as civilizações são áreas culturais complexas nas quais muitos elementos e influências coexistem e que as relações entre os povos vão muito além de conflitos bélicos. Por isso, a ideia de choque, de uma confrontação global permanente entre os países, não tem fundamento. Depois da Guerra Fria, as fatalidades mais graves do mundo ocorreram dentro de civilizações, sendo algumas das mais sangrentas o genocídio de tutsis pelo governo hutu em Ruanda, em 1994; a limpeza étnica da Guerra da Bósnia entre 1992 e 1995; o banho de sangue ocorrido em Sri Lanka, em 2009; e a guerra entre Iraque e Kuwait, entre 1990 e 1991. Calculamos que, dos 153 maiores conflitos atuais no mundo, 146 ocorrem dentro dos Estados e não entre países, como sugere a teoria do choque. 

Além disso, a grande atenção que Huntington deu ao conflito entre Ocidente e mundo muçulmano também é equivocada. Ele ignora que a maioria dos muçulmanos aspira aos mesmos objetivos que as pessoas do Ocidente — algo cada vez mais evidente com a Primavera Árabe — e desconhece que o islã engloba comunidades com características muito diversas. Também vale lembrar que as divergências entre governos muçulmanos e ocidentais são menos substanciais do que a imprensa mostra. 

Por outro lado, embora não exista choque de civilizações, a cultura e a religião dos povos impactam em suas relações, já que são elementos que contribuem à formação de indivíduos e entidades grupais. Depende da situação, são fatores que se tornam importantes para estabelecer percepções de “nós” e de “outros”. E essas percepções podem ser facilmente exageradas e manipuladas, fomentando preconceitos. Os estereótipos formados a partir dessas ideias geram tensões que se alimentam mutuamente. Dos 153 conflitos que mencionei acima, 97 possuem claras dimensões culturais, que não são necessariamente suas causas, mas podem ser interpretadas como fatores. 

O que motivou a criação da Aliança das Civilizações? Qual sua relação com os atentados de 11 de setembro em Nova York? 

Embora tenham ganhado atenção massiva da mídia, os atentados de 11 de setembro de 2001 em Nova York foram somente um evento entre muitos durante uma década de tensões interculturais e interreligiosas entre o Ocidente e o chamado mundo muçulmano. Os atentados em Londres e Madri foram outros acontecimentos relevantes, assim como a crise com a charge do profeta na Dinamarca. 

A Unaoc foi criada em 2005 pela Secretaria Geral das Nações Unidas, com o patrocínio da Espanha e da Turquia, como resposta à crescente polarização do mundo após os atentados de 11 de setembro. É integrada por 128 governos e organizações internacionais, e os Estados Unidos aderiram à iniciativa somente no ano passado. Em abril de 2007, o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, anunciou Jorge Sampaio, ex-presidente de Portugal, como o representante máximo da Aliança. 

Qual a importância do programa no contexto da teoria do choque de civilizações? 

A Aliança das Civilizações foi desenvolvida como um contra-argumento político à ideia de que deva existir algo como um choque de civilizações. O programa reconhece que há uma longa troca entre os diferentes povos que não diz respeito somente a conflitos e guerras. Seu objetivo é melhorar o entendimento entre as nações e pessoas de diferentes culturas e religiões e em particular entre o islã e as sociedades do Ocidente. Queremos conter as forças que alimentam todos os tipos de extremismos e estereótipos. E, para conseguir uma paz sustentável, necessitamos combater divisões e percepções equivocadas entre culturas. 

Ato realizado na praça Talaat Harb em repúdio ao assassinato de manifestantes cristãos pelo exército egípcio - Foto: Jonathan Rashad/CC
O senhor pode dar exemplos práticos de como a Unaoc funciona? 

O programa tenta abrir caminhos de cooperação prática e que permitam desconstruir estereótipos, por meio de projetos nas áreas de mídia, migração, educação e juventude. Nesse sentido, capacitamos 400 profissionais ao redor do mundo que se conectam com jornalistas de forma a elevar a qualidade das matérias e das análises feitas pela imprensa. Queremos que os jornais tenham em conta essas críticas e fundamentos na hora de publicar textos e notícias relativas a conflitos entre povos. Outras iniciativas são o financiamento de projetos que construam pontes entre culturas e comunidades e um festival de vídeo para jovens chamado Plural+, que visa oferecer ideias para a avaliação de temas complexos como migração, inclusão social e diversidade. A Aliança também organiza fóruns para discussão desses assuntos e a próxima edição ocorrerá em Doha (Qatar), em dezembro. Há uma necessidade real de melhorar a governança da diversidade cultural e promover sociedades mais inclusivas, nas quais as diferenças sejam vistas como elementos positivos e não como problemas. 

De forma resumida, quais seriam os principais desafios do programa hoje? 

Os desafios da Aliança, um projeto ainda muito novo, são os seguintes: fazer com que as pessoas experimentem a diversidade como um benefício e diminuir a polarização cultural e religiosa em diferentes contextos no mundo. Queremos desenvolver ações apropriadas à magnitude dos problemas, mobilizando diferentes instituições e atores da sociedade civil para que eles tomem iniciativas corretas localmente e em níveis globais também. A Aliança também visa reforçar as relações entre a zona euro- mediterrânea, que tem sido de longe nossa principal área de ação. A ideia também é atuar de forma mais relevante e útil na África e em países da Ásia, além de impulsionar uma estratégia que acabamos de criar para a América Latina. Outro desafio é fazer com que o diálogo intercultural e a cooperação entre países passem a integrar a agenda internacional. E, para superar esses desafios, é necessário contar com uma coalizão mais sólida entre países e aumentar a captação de recursos financeiros.


Extraído do sítio do Brasil de Fato

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