04 novembro 2011

A ELEIÇÃO DE CRISTINA FAZ AVANÇAR A AMÉRICA LATINA? - Enéas de Souza

Cena Um – Estou na Plaza de Mayo, Buenos Aires, domingo à noite, dia da eleição argentina; uma grande multidão de crianças, jovens, adultos e velhos, com tiaras, fitas, bandeiras, gritos e pulos, comemoram a vitória de Cristina Kirchner. Um vendedor berra furiosamente, no meio da massa, a sua mercadoria: “Cerveza! Cerveza! Cerveza!”. Ninguém se preocupa e se incomoda. Há um desejo forte de comemoração. Comemorar a vitória e esperar que a presidenta apareça. Há uma alegria sincera e intensa. As bandeiras dançam, um locutor anima a festa e todo mundo celebra o acontecimento. Em alguns momentos, na noite cheia de faixas e balões, estouram canções de louvor à Cristina e, como num estádio de futebol, as pessoas pulam de alegria. Não diria que há uma euforia exuberante, mas há um entusiasmo contente e moderado.


Cena Dois – Vou num taxi conversando com o motorista, perguntando sobre as eleições e tentando compreender o seu mau humor cada vez mais consistente e graúdo. A certa altura, ele me diz: “Não gosto de política. Os políticos são todos ladrões. Eu não votei em Cristina, votei no Rodriguez Saa. Não quero mais falar do meu país” (O seu candidato não fez sequer 8%). E vejo que está irredutível, não quer mesmo mais falar sobre o assunto. Está furioso.

PRIMEIRA CONCLUSÃO: O FRACASSO DO NEOLIBERALISMO

O que a gente percebe é que o insuficiente neoliberalismo teve um baque enorme com essa vitória da Cristina. A população vem percebendo desde 2001 que o neoliberalismo foi uma tragédia para a Argentina. E por isso, com a vitória da presidenta, ela consegue entender que o país está na eminência de escapar da crise absoluta – de “uma crise que parecia terminal” diria Ricardo Forster no seu livro “El litígio por la democracia”. O que evidencia que Kirchner e Cristina inverteram a curva da destruição do país, tratando de diminuir e conseguindo, até agora, tirar muita gente da pobreza e da indigência. E o povo ainda está desconfiado, depois de tanta lambada, de tanto cinismo e tanto banditismo do tempo de Menem. Ele começa a acreditar, pelo menos uma boa parte dele. A Cena Um, que narramos acima, tem o pendor de mostrar um grupo de pessoas, mais de 50% dos votantes, acreditando, achando, um pouco desconfiados é verdade, que é possível avançar, ganhar e progredir. Festejam. E não se trata apenas de retórica, o que se sente é que existe um projeto do Kirchnerismo, que Cristina leva adiante e que tem sintonia com a gente humilde. E esse projeto tem uma face imediata: acabar com o neoliberalismo. Pois foi esse neoliberalismo de Menem, que dando sequência à catastrófica política econômica de Martinez de Hoz dos anos 80, levou a nação ao caos total. Não se tem idéia da profundidade enorme da devastação social, política, econômica a que chegou a Argentina no início dos anos 2000. E foi isso que Kirchner e Cristina bloquearam e começaram a reverter. Martinez de Hoz – não o mágico mas o delirante de Hoz – dizia, na sua vigarice neoliberal: “Achicar el Estado, agrandar la Nación”. Uma piada. Acabou com o país e o Estado ficou em frangalhos. Em “ruínas” como disse Kirchner numa conversa com José Pablo Feinmann. No entanto, o neoliberalismo está batido, mas ainda não vencido.

A SUSTENTAÇÃO EXTERNA DO MOVIMENTO INTERNO


O movimento de recuperação da Argentina segue o mesmo processo do Brasil. De um lado, o Estado retoma minimamente a liderança e tem um projeto nacional. E de outro lado, para expandir a economia do país, tem que ter uma presença internacional. E essa presença se dará em união com as demais nações latino-americanas. Cristina tem certeza, como Kirchner já tinha, a saída para os países desta região – portanto, para a Argentina, inclusive – é latino-americana. O que significa incrementar fortemente uma defesa comum para a área, seja através de políticas comuns, seja através de uma atuação vigorosa em fóruns como o G-20 onde, juntamente com o Brasil, a Argentina pode propor diversos temas. E entre eles se destaca a busca de abertura de mercado para os produtos agrícolas, que os países avançados tratam de manter um protecionismo de longa data.

Essa posição poderá ser acompanhada por uma política interna que, além do incremento da produção desses bens citados, permita também que ocorra uma industrialização mais forte dos referidos produtos. Naturalmente que, para tal, é indispensável que o Estado desenvolva políticas de fomento que assegurem aos industriais argentinos um apoio bastante forte em termos de produção, de inovação, exportação, etc. Se isso ocorrer, a tradução social será tanto no aumento do produto como na ampliação do emprego. Ora, o Estado pode tentar seguir esse rumo, justamente porque conseguiu dar uma consistência à política fiscal. O que está ainda fora de controle é a questão inflacionária. Uma pressão contundente, que funciona como um espelho das tensões da economia e da política do país.

CRISTINA PARA MUDAR O ESTADO DE COISAS

Portanto, o kirchnerismo de Cristina vai ampliar aliança dos setores capitalistas nacionais com os setores operários, dos trabalhadores do setor serviço, intelectuais e universitários, mas também com setores indigentes e pobres e desempregados, porque sem essa aliança – uma aliança populista – será impossível avançar nesse projeto. Um governo que não tenha base popular não tem como se manter. E é por isso que esta vitória aplastante afeta a pequena burguesia – Cena Dois – que se sente ameaçada, pois ela, como certos setores agrários, pensa em termos relativos. Se eu não pioro, mas os outros melhoram, na verdade, estou piorando relativamente. E a proposta de Cristina é certamente avançar a economia nacional, mas ao mesmo tempo dar ênfase aos setores desfavorecidos pelo neoliberalismo, o que desagrada aqueles que pretendiam, na pior das hipóteses, manter o estado de coisas.

A COMBINAÇÃO INSUPERÁVEL DA VITÓRIA

Porém, a verdade é que Cristina desmanchou, pelo menos por mais um tempo – com habilidade, astúcia, coragem e inexorabilidade – as hostes adversárias e os seus contendores. Seguramente, ela foi a grande vencedora, ela deu um passo a mais na sua trajetória, mas não se pode esquecer que a morte de Kirchner está na base deste triunfo. Foi uma combinação detonante: o peso de um passado que deu certo com um futuro que pode ser tão promissor quanto possível. E por quê? Porque a população sentiu que, no meio de erros, de problemas, equívocos, etc., há um projeto que pretende incluir o maior número de pessoas, sobretudo os de má situação de renda e de condição social precária. E isso se não é uma certeza, é, ao menos, uma promessa que elas podem acreditar. Porque o neoliberalismo que prometia riqueza a todos foi a causa da dinamite que jogou a Argentina no espelho do abismo.

Cena Três – Estamos na virada de domingo para segunda, a música solta e vibrante, uma multidão que celebra e que tem esperanças. Com uma lavada alma, vibrando em cima de uma campanha exitosa, Cristina dança e baila com um sorriso, pela primeira vez, em público, serena, e aceitando um pequeno repouso depois da morte de Nestor, seu companheiro de jornadas. Uma vez, em 2006/7 ouvi, quando saia de um táxi, a frase derradeira que condenava o casal, contra o qual o motorista empilhava e empilhava argumentos. No fundo, todo argentino, de um modo geral é um político ativo. Tem posição e tem idéias. Ele gritou: “Y lo pero és que la pareja és indecente”. Lembrei-me dele quando Cristina dançava só, dançando a vitória em forma de profunda maioria. Sim, “la pareja” tinha dado a volta por cima, a barragem neoliberal, oriunda sobretudo da mídia, tinha perdido. A morte de Nestor e a firmeza de Cristina estavam constituindo uma nova figura política do casal.

AS ENCRUZILHADAS DA ARGENTINA

Quando a gente olha para uma possível trajetória da Argentina, o que se percebe é que ela vai ter que passar por vários desafios. Entre eles, se podem notar, com saliência, os seguintes:

1. Deixar de lado o ideário e as instituições neoliberais que destruíram o Estado e a Argentina;
2. Voltar a ter uma política econômica, política e social que se refira permanentemente à igualdade e a justiça;
3. Repensar o seu passado peronista (o bom e o mau), revisar a sua memória menenmista, e projetar um novo estágio do kirchernismo-cristinismo;
4. Criar novas figuras do poder e da política – ou seja, o seu futuro em função de um novo projeto de nação;
5. Trabalhar para a criação de um Estado dominado, como dizia Kirchner, por “valores e convicções”, que articule projeto nacional, política econômica autônoma, planejamento e uma política externa. E que mantenha a liberdade de imprensa, a democracia, mas não seja prisioneira do setor midiático;
6. Fazer da política econômica e social um instrumento de reformulação da área industrial, de uma sustentação do setor agrário, de resultados fiscais importantes, definindo políticas cambiais e protecionistas adequadas à nação, bem as questões de educação, saúde, previdência e cultura;
7. Introduzir na política externa uma forte união com o Brasil, na organização de uma América do Sul e de uma América Latina sólidas, ativas e sempre proposicionais;
8. Adequar os seus interesses econômicos para a construção de um processo de integração infra-estrutural (estradas, portos, aeroportos, reorganização urbana, etc.) da América do Sul, combinando apoio ao setor capitalista, mas contrabalançando o poder discriminatório do capital com uma intervenção estatal reequilibradora da situação salarial, de aspectos sociais, etc.
9. Dar o exemplo de sua política de defesa dos direitos humanos para os países menos adiantados no tema na região;
10. Ajudar a formular uma política e uma estratégia para a América Latina no mundo, de tal modo que a sua execução se torne protagonista nos cenários mundiais, nestes tempos de crise;
11. Buscar o equacionamento de uma política econômica que relacione: as empresas multinacionais que atuam no espaço planetário, mas que passam por espaços nacionais com os Estados Nacionais sul-americanos e latino-americanos, individual e coletivamente, para equilibrar a relação de forças entre corporações produtivas e Estados;
12. Controlar com a força do Estado o capital financeiro estrangeiro e nacional, apoiar fortemente o setor produtivo local, mas, sobretudo, pensar que a nova configuração econômica tem que se direcionar para um novo padrão tecnológico que virá, envolvendo energia, meio ambiente, comunicação, informação, biotecnologia, etc.;
13. Ter clareza das possibilidades e dos limites da integração da América do Sul e da América Latina, na dinâmica da solução da crise geopolítica e geoeconômica que assola o neoliberalismo financeiro de guerra.

A VIAGEM E A VOLTA


Fiquei um tempo na Argentina e vi a atmosfera de uma cidade, Buenos Aires. Do que olhei, do que li, do que conversei, com amigos e desconhecidos, cheguei a algumas conclusões, que estão aí. Tenho a clara e nítida sensação que a Argentina deu um salto, imperceptível para alguns, evidente para outros. O conflito, no entanto, se aguça, vai assumir novas formas, teremos novos desafios e novas dimensões. Tudo está em aberto, nada é certo. A direita prepara o contra-ataque, embora esteja na defensiva. É a hora de aproveitar o que Borges chamava de “fervor compartido”. São mais de 50% que apóiam o governo. E no campo internacional, temos sempre a pergunta que vai animar as nossas relações: poderão a Argentina de Cristina e o Brasil de Dilma acertar o passo numa estratégia e num projeto sul-americano/latino-americano para o mundo? Já se poderá ver alguma coisa na reunião do G-20 nesta semana, em Cannes?

* Fotos de Luciana Licht, feitas durante o Comicio da Vitória.

Extraído do sítio do jornal Sul21 

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