Uma entrevista excepcional que permaneceu no esquecimento durante mais de 50 anos e foi encontrada pela cineasta Rebeca Chávez durante uma busca quase como uma detetive, chega às telas do 33º Festival Internacional do Novo Cinema Latino-americano na sessão não competitiva. O protagonista é nada menos que o jovem Fidel Castro, às vésperas de sua entrada em Havana depois do triunfo da Revolução. Por Alejandra Garcia, em Cubadebate
Fidel Castro, em 1959 |
Rebeca, uma conhecida diretora do cinema cubano, fez o documentário “O dia mais longo” a partir deste precioso achado, que “dormia” nos arquivos de filmes do Instituto Cubano de Rádio e Televisão (ICRT). Não teria sido possível o aproveitamento desse material sem seu faro de jornalista, sua formação de historiadora e sua paixão por destrinchar acontecimentos, que percorrem toda a sua filmografia.
Conversamos enquanto o “olho” de uma câmera de vídeo filma o diálogo tendo ao fundo o ruído de uma Havana noturna. Tenho a sensação de não estar conversando sobre fatos do passado, mas sobre um modo contemporâneo de fazer cinema em que a História sempre está no presente.
Rebeca entregou ao Cubadebate uma cópia de “O dia mais longo”, documentário produzido pelo Instituto Cubano de Arte e Indústria Cinematográficas (Icaic), para exibi-la em 2 de dezembro – 55º aniversário do Desembarque do Granma-, mas antes narra os detalhes da realização de seu filme.
Cubadebate: Como encontrou a entrevista e onde?
Rebeca Chávez: Enquanto fazia uma pesquisa para a série Caminhos da Revolução, concretamente para o capítulo intitulado “Antes de 59″, encontramos quase por acaso a entrevista. Naquele momento estava somente na ficha que consignava sua existência mas não dispus a tempo do material. Não deixei de pensar que talvez aparecesse e graças à constância de Zoila y Marlen do ICRT foi isso que aconteceu. Revisei praticamente tudo o que havia de 1959.
Recorde-se que naquele ano o ICRT ainda não tinha sido fundado. Existia a rede de rádio e televisão CMQ, a mais importante e que tinha correspondentes em muitíssimos lugares. Esta rede de rádio e televisão estava a par do que ocorria em Cuba e entre os materiais aparece esta entrevista, que é a segunda que fazem com Fidel Castro nos primeiros quatro dias de janeiro de 1959. A primeira foi feita em Palma Soriano e esta é a segunda, que ocorre no Aeroporto de Camagüey, em 4 de janeiro. Fidel vinha à frente da Coluna número um, proveniente de Santiago de Cuba indo para Havana. Ignoro se o jornalista Luis, que fez a entrevista, estava em Camagüey porque era de lá ou apenas estava lá…
Cubadebate: Por que o documentário se intitula “O dia mais longo”?
RC: Porque não são as 24 horas daquele 4 de janeiro, mas um dia mais longo, que começou quando Fidel fica sabendo da fuga de Batista até sua chegada a Camagüey. São fisicamente como cinco ou seis dias na vida de uma pessoa, mas na história, na emoção, é - creio que pode ser assumido assim – um só dia para Fidel. É uma mesma sequência de fatos: Batista vai embora, foge, ele organiza as tropas para a tomada de Santiago de Cuba e ele próprio não crê que vai entrar tão rápido em Santiago.
Cubadebate: Como conseguiu armar algo assim?
RC: A primeira coisa foi fazer uma cronologia dos fatos fundamentais, que permita ao espectador situar-se no contexto daqueles dias. Dezembro de 1958 é um dos meses mais febris da Revolução, com a Batalha de Santa Clara, as tropas de Batista nas últimas e o Exército Rebelde na ofensiva final.
A Batalha de Santa Clara é um fato crucial, porque ali realmente o Exército de Batista entra em colapso. A Coluna número um de Fidel estava nesse momento na Central América, nas proximidades de Santiago de Cuba e é ali onde ele toma conhecimento por rádio que Batista tinha ido embora.
Na entrevista que deu em Palma Soriano ele conta algumas coisas que estava vivendo mas o áudio dessa entrevista está francamente em péssimo estado… quando chega a Camagüey, creio que estava mais tranquilo, à vontade (mesmo que sem dormir como ele mesmo contou) mas já tinha triunfado e conta com mais detalhes o que tinha vivido. É uma longa entrevista, feita para a televisão que dura cerca de uma hora…
Cubadebate: Foi transmitida pela televisão nesse dia ou depois?
RM: Não sei. Como todos os acontecimentos eram importantes e uns se sucediam aos outros, cada minuto e cada notícia eram cruciais, penso que esta entrevista, se é que foi transmitida, talvez não tenha sido completamente. Era muito longa, estava sem edição, e ficou ali até que a encontrei.
Cubadebate: Como conseguiu reviver uma entrevista feita por outra pessoa em outra circunstância?
Foi o mais interessante e um desafio, mas depois de tanto tempo é um risco… pois quem a fez originalmente tinha outros objetivos, os cruciais do jornalismo. É alguém que se diz a si mesmo: agora tenho o protagonista essencial da História que está sacudindo Cuba e ele vai me contar.
E é isso que faz Fidel, contar, não só o que viveu naquele 4 de janeiro de 1959 no Aeropuerto de Camagüey, mas o ocorrido nos dias precedentes, que ele tinha muito vivos em sua memória. Ele recorda com muita emoção os que caíram nas batalhas, as derrotas, e fala sobre o que o espera. Imagina, ali está um Fidel de 32 anos, na plenitude de sua beleza física, eufórico, um herói absolutamente popular e tratando de explicar aos demais e a si mesmo o que estava sentindo… que era incrível.
Cubadebate: Como realizou o trabalho de edição?
RC: Desmontei por completo a entrevista para recriar e reestruturar com a editora. Fomos para a frente e para trás e voltei aos arquivos tanto da televisão como do Instituto Cubano de Arte e Indústria Cinematográficas (Icaic) e ao Escritório de Assuntos Históricos do Conselho de Estado, esse maravilhoso escritório que Celia Sanchez teceu e quase bordou. Ali continua ainda Elsa Montero que conhece todas as fotos; elas me ajudaram muito porque há ali muito material daqueles dias.
Peguei tudo o que havia - voltei a descobrir sobretudo muitas fotografias inéditas - e fui complementando com esse material a história narrada por Fidel.
Cubadebate: Como vincula o material fotográfico novo com o conteúdo da entrevista filmada?
RC: É apaixonante fazê-lo. Por exemplo, em um momento dado Fidel conta que se reuniu com Eulogio Cantillo - um general batistiano que o traiu - na Central Oriente, para que se rendam e aí estão as fotos. Ele comenta sobre a reunião com Rego Rubido, que era o chefe da Praça Militar em Santiago de Cuba naquele momento, e estão as fotos e filmagens desse encontro em Escandel, perto de Santiago de Cuba. Ali vemos Celia, Vilma, todos cansadíssimos, nas negociações. Está filmado o momento quando Raúl chega ao Moncada no mesmo dia 1º e a calorosa recepção popular dos santiaguenhos de madrugada. Com estas imagens , vamos apresentando o testemunho de tudo o que Fidel diz, que realmente ocorreu quase tal e qual ele conta.
É, como tu dizes, um documento salvo do esquecimento. Submetemos o material a uma série de trabalhos técnicos para limpar a fita, ter mais definição na imagem. Foi digitalizado e agora este material vai ter muitíssimo mais vida.
Cubadebate: Por que não estará na competição?
RC: Foi minha decisão, com a qual o Icaic concordou. Não creio que este material seja para competir na mostra, tem outros objetivos, esclareço que competir me encanta, é uma maneira de saber o que se faz. Além do mais, este ano sou jurada de Obra Prima de Ficção, prefiro que se divulgue, que as pessoas conheçam meu documentário sem que ele esteja necesariamente na competição. Em síntese, não gosto de pôr na comopetição um material com Fidel como protagonista.
E, de certo modo, o documentário passou por uma prova que para mim era muito importante: o olhar dos jovens. A editora Kenia é uma moça de 27 anos que tem trabalhado comigo em outros projetos e ela é a primeira peneira importante que utilizo para avaliar minha obra. Estava muito motivada, se envolveu muito na estrutura que queria obter e se agarrou a esse material. Isso também ocorreu com Reynier que fez os efeitos visuaus. Ele ainda estuda na Cujae. Embora façam parte da equipe técnica, também dizem o que pensam sobre todos os aspectos…como deve ser. O assunto é que quando alguém – como cineasta – viaja pela história, sempre tem o terror e a angústia de que as pessoas recebam e sintam como uma coisa velha, sem interesse… Os mais jovens estão acostumados a ver em velocidade, têm a ideia de que com as novas ferramentas tecnológicas estão “informados” e o que ocorre é que passam pela superfície das coisas, com um estado de ânimo tendente a ter preconceitos com o “histórico”… Não creio que seja o caso, e tenho essa ilusão, por tratar-se desta imagem fresca e quase inédita de Fidel.
Cubadebate: Que importância tem a música neste documentário? Por que utilizou o Quinteto Rebelde?
RC: Se queres ter uma crônica do cubano, em qualquer época e com qualquer sonoridade, busca a música porque nela tudo está dito com as nossas sensualidade e picardia e além disso se canta e se dança… A filmagem do Quinteto Rebelde me motivava desde que a vi a primeira vez… Se sintetiza nesses planos, é isso que te digo. Imagina: estamos na Sierra Maestra, em meio à guerra, Fidel, Celia, Haydeé, o Dr. Martinez Paez e muitíssimos rebeldes comem com as mãos, riem enquanto os do “Quinteto” tocam violão e cantam esses versos que anunciam uma sabedoria popular que estará no futuro. Ainda faltam muitos meses de guerra. Vê-se nesses planos também um carinho e proximidade com esses homens e mulheres que são nossos heróis contemporâneos. O Quinteto vem como anel no dedo.
Cubadebate: Você tem uma importante obra como documentarista. O que ese filme lhe acrescentou?
RC: Coloquei-me diante deste material como se fosse a primeira vez que fazia um filme. Acumulo uma experiência e talvez, somente talvez, esteja mais segura ou menos nervosa, mas as interrogações e as dúvidas são permanentes. Aqui, além de algo relacionado com a História, havia o frescor dos personagens e as possibilidades de usar outros recursos narrativos para complementar visualmente a entrevista original. Também a figura ou personalidade de Fidel é muito atraente e sempre alguém pode se perguntar: o que há de novo?
Cubadebate: Pode-se falar de um cinema eminentemente histórico?
RC: Sim, pode-se falar. A história é o que alguém não viveu. O rótulo não vem pelo que se narra, vem pelo apego a contar “tal e como foram” ou como se tem dito que foram os fatos, quer dizer, os espectadores esperam que tu repitas a história que já conhecem ou creem conhecer e quando isso não ocorre se sentem traídos. O detalhe é que cada qual pode contar a história segundo a viu ou viveu ou manipulou para servir-se dela… Te recordas do filme Rashomon [do director japonês Akira Kurosawa]?
O outro ângulo do assunto pode ter que ver com uma maneira tediosa, chata, isenta de conflitos ou contradições com que às vezes se apresentam histórias da História, fazem uma espécie de limpeza ou desbotam o tema abordado e isso é pouco atraente em termos de cinema.
Cubadebate: É um documentário do passado ou do presente?
RC: As duas coisas. É uma história do passado que quer prolongar-se no presente. Depois de tudo é uma aspiração muito antiga e que por sorte ocorre todos os dias. Tudo começa no passado.
Extraído do sítio do Portal Vermelho
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