Livro recém-lançado do Nobel de Literatura traz discursos anti-bélicos que o escritor colombiano fez desde os 17 aos 80 anos, embasados por sua luta em defesa da unidade e soberania da parte latina e submetida do continente americano.
O livro “Eu não vim fazer um discurso” (Editora Record, 2011), de Gabriel García Márquez, apresenta os discursos do autor desde sua formatura no equivalente ao nosso ensino médio, a tantos eventos literários, culturais e políticos por onde passou, sempre denunciando o imperialismo norte-americano e a submissão dos regimes ditatoriais latino-americanos. Sempre um grito em favor da liberdade e dos oprimidos.
García Márquez nasceu em 06 de março de 1927 e enfrentou diversas dificuldades, inclusive financeiras, até consagrar-se como escritor. Justamente por sua opção política na defesa dos interesses nacionais e do povo de seu país e contra toda forma de opressão, transformou-se em um dos maiores representantes latino-americanos do chamado “realismo mágico”, uma escola literária que usa do absurdo para mostrar a realidade, numa maneira de driblar a censura existente na maioria dos países na parte sul do continente. Para alguns, uma resposta latino-americana à literatura fantástica europeia, só que diferentemente, aqui, não apresenta teor niilista em seu conteúdo. Pelo contrário, vislumbra um futuro melhor. Márquez sempre acreditou na necessidade de unidade dos países latino-americanos e de uma luta conjunta, permanente, contra a sombra do imperialismo e do fascismo no continente.
Grandes nomes escolheram o caminho do fantástico para escrever seus livros, entre eles os argentinos Julio Cortázar e Jorge Luis Borges, o venezuelano Arturo Uslar Pietri, considerado o pai do realismo mágico no continente, o cubano Alejo Carpentier e, mais recentemente, a chilena Isabel Allende, filha de Salvador Allende e a mexicana Laura Esquivel, entre outros. Alguns autores brasileiros também enveredaram por esse caminho, como Murilo Rubião e José J. Veiga, ou o dramaturgo Dias Gomes nas novelas que escreveu para a televisão.
Já aos 17 anos, ao pronunciar discurso de despedida na escola em que estudou, o colombiano mostrava ao que veio. “Toda esta série de acontecimentos cotidianos que nos uniram através de laços inquebrantáveis com este grupo de rapazes que hoje abrirá caminho na vida”. E seu caminho foi se abrindo a duras penas, porque ele escolheu um rumo de luta e de soberania contra a classe dominante ditatorial, elitista e antinacional. Num outro discurso sobre literatura ele explica como e por que começou a escrever. “Comecei a ser escritor da mesma forma que subi neste palco: à força”, afirma, e complementa, ao contar o motivo que o levou a escrever seu primeiro conto e enviá-lo para o jornal publicá-lo: “Eduardo Zalamea Borda, diretor do suplemento literário do ‘El Spectador’ de Bogotá, publicou um artigo no qual dizia que as novas gerações de escritores não ofereciam nada, que não se via em lugar algum um novo contista ou um novo romancista”. Provocado, Márquez escreveu um conto e o editor reconheceu o engano e pediu desculpas.
Em seus discursos. o escritor sempre colocava sua posição política em favor da liberdade, da igualdade, da soberania dos povos e da justiça social. Mesmo em 1982, quando recebeu o Prêmio Nobel de Literatura, ele denunciou o preconceito com o qual éramos vistos pelos europeus, assim como a situação de penúria e opressão vivenciada na América Latina de então, diferente de hoje, quando vislumbramos luzes no fim do túnel em todos os aspectos da vida.
No discurso de agradecimento pelo Nobel, diz que “a independência do domínio espanhol não nos pôs a salvo da demência”, porque “os desaparecidos pela repressão somam quase 120 mil” e ainda porque “20 milhões de crianças latino-americanas morreram antes de fazer dois anos” e complementa com as denúncias ao afirmar que “é compreensível que insistam em nos medir com a mesma vara com que se medem, sem recordar que os estragos da vida não são iguais para todos, e que a busca da identidade própria é tão árdua e sangrenta para nós como foi para eles”, ao falar sobre a atitude dos europeus e norte-americanos em relação a nós. No discurso “A América Latina existe”, Márquez afirma que “tudo o que não parece com eles parece um erro, e fazem tudo para a sua maneira, corrigir isso, como, aliás, fazem os Estados Unidos”.
Pela paz e pela cultura
Diversas vezes o autor colombiano pronunciou-se em favor da paz ao defender a autodeterminação dos povos, contra as guerras imperialistas. Num discurso para militares disse aos soldados que “a vida de todos nós seria melhor se cada um dos senhores levasse sempre um livro na mochila”. Da mesma forma afirmou também que “as crianças que hoje estão na escola primária preparando-se para reger nossos destinos continuam condenadas a contar com os dedos da mão, como os contadores da mais remota antiguidade, enquanto já existem computadores capazes de fazer cem mil operações aritméticas por segundo”, ao denunciar o descaso coma educação nos países da América Latina. Noutro discurso contra o armamento e contra a guerra afirma Márquez que “diante deste descomunal desperdício econômico, é ainda mais inquietante e doloroso o desperdício humano: a indústria da guerra mantém em cativeiro o maior contingente de sábios jamais reunidos para tarefa alguma na história da humanidade” e continua dizendo que a libertação deles é fundamental “para que nos ajudem a criar, no âmbito da educação e da justiça, a única coisa que pode nos salvar da barbárie: a cultura da paz”.
Foi uma crítica direta à indústria bélica e a opressão que impedia os países do Terceiro Mundo de se libertar e progredir. Em um evento, Márquez afirmou que “estamos aqui para tentar que um encontro de intelectuais tenha aquilo que a imensa maioria deles não teve: utilidade prática e continuidade” defenderam ainda que “a cultura é a força totalizadora da criação: o aproveitamento social da inteligência humana” e “como disse Jack Lang sem maiores rodeios: ‘a cultura é tudo’”.
Para Gabriel García Márquez “a corrida das armas vai ao sentido contrário da inteligência”, ele diz ainda “a educação privada, boa ou ruim, é a forma mais efetiva da discriminação social”. Ao debater a necessidade de se investir na educação pública, no incentivo à leitura e na defesa da cultura nacional dos países, respeitando-se as formas populares de expressão.
O escritor e jornalista também falou de jornalismo. “Alguém teria que ensinar aos jornalistas que o gravador não é um substituto da memória e, sim, uma evolução da humilde caderneta de anotações”, ao criticar o uso excessivo da tecnologia em detrimento da inteligência e da argúcia no jornalismo. Diz também com razão que para o exercício do bom jornalismo “ninguém que não tenha nascido para isso e esteja disposto a morrer por isso poderia persistir num ofício tão incompreensível e voraz, cuja obra termina depois de cada notícia, como se fosse para sempre, e não concede um instante de paz enquanto não torne a começar com mais ardor que nunca no minuto seguinte”, numa visão do que seja a função de jornalista, terrivelmente abandonada nestes tempos de tentativas de arrombamento de apartamentos, de paparazzi, de invasão de privacidade, de diz-que-diz, de submissão à empresa, de falta de escrúpulos e de falta de ética no jornalismo.
Uma voz da América Latina
O escritor diz com segurança que “maltratada e dispersa, e ainda sem acabar, e sempre à procura de uma ética da vida, a América Latina existe. A prova disso? Nestes dois dias tivemos essa prova: pensamos logo existimos”, sobre encontro de intelectuais sobre a cultura na América Latina. Mas também critica com veemência ao afirmar que “minha impressão é que o tráfico de drogas se tornou u problema que escapou das mãos da humanidade. Isso não quer dizer que devemos ser pessimistas e declarar-nos derrotados, mas que é preciso continuar combatendo o problema” para tirar a juventude das garras do tráfico ele acredita ser necessário mover-se esforços de educação e de ocupar-se os jovens, mas também com a solução das questões sociais que extinguem a miséria e sobre o seu país ele acredita que “é impossível imaginar o fim da violência na Colômbia sem a eliminação do narcotráfico”.
Parece que inclusive o Brasil hoje vive situação semelhante onde perdemos inúmeras vidas de jovens da periferia dos grandes centros para os traficantes e para a violência policial.
Ainda sobre a necessidade de unidade da América Latina Márquez afirma, em 1990, que vivemos num continente “no qual a morte há de ser derrotada pela felicidade e haverá mais paz para sempre, mais tempo e melhor saúde, mais comida quente, mais rumbas saborosas, mais de tudo de bom para todos. Em duas palavras: mais amor”. Um tempo, diz o escritor colombiano, “que cada um possa fazer apenas aquilo que goste do berço à tumba”.
Como um dos grandes escritores em língua espanhola de todos os tempos, Gabriel García Márquez revela em sua obra a obstinação por um mundo melhor através de sua literatura e de livros fundamentais para a leitura de todos, como “Cem anos de solidão”, “O amor nos tempos do cólera” e muitos outros livros que o colocam como um dos grandes escritores mundiais e uma voz constante em defesa da América Latina. García Márquez teve inúmeras obras adaptadas para o cinema e aposentou-se em 2009 deste ofício do qual diz ser falta de escolha na vida. Que bom se todos tivessem tamanha falta de escolha!
*Marcos Aurélio Ruy é colaborador do Vermelho.
Algumas obras de Gabriel García Márquez:
Cem anos de solidão (1967)
Como contar um conto (1947-1972)
O amor nos tempos do cólera (1985)
Doze contos peregrinos (1992)
Do amor e outros demônios (1994)
Memórias de minhas putas tristes (2004)
Fonte: Sítio do Portal Vermelho
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