25 outubro 2011

"A ONDA" - O FASCISMO ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE - Francisco Bicudo

Por conta de uma aula em que conversei com os alunos sobre o avanços da extrema-direita nos Estados Unidos e na Europa, acabei revendo o filme "A Onda" (2008, dirigido por Dennis Gansel, 106 minutos de duração). A narrativa já tinha me impressionado à época de seu lançamento (lembro-me que, ao final da trama, um aperto na garganta, fiquei em silêncio por algumas horas, remoendo os acontecimentos nela retratados). Torna-se ainda mais incômoda e impactante, se considerarmos as mudanças planetárias e as crises vividas nos últimos três anos e o consequente surgimento e a consolidação de movimentos fundamentalistas como o Tea Party estadunidense e as ações intolerantes patrocinadas por governos e agrupamentos políticos conservadores em diversos países europeus. "A Onda" permite ainda identificar registros de discursos e práticas fascistas que infelizmente reverberam com contornos cada vez mais nítidos também no Brasil. 

A história começa com um professor de ensino médio na Alemanha bastante desinteressado de sua profissão e desgostoso de suas aulas, que fica ainda mais frustrado quando é informado pela direção do colégio onde leciona que será o responsável por trabalhar em sala o tema "Autocracia" (seu desejo confesso era discutir "Anarquia"). Na outra ponta, encontrará alunos tão acomodados quanto perdidos, para quem estudar tornou-se uma tarefa sem importância ou significados. Para eles, a escola é sinônimo de obrigação enfadonha, um espaço chato e por quem manifestam solene desdém. Há uma cena ilustrativa dessa postura: em uma festa, dois jovens conversam e admitem: "a gente só quer diversão. Contra o que vamos nos revoltar? A falta de perspectivas é a marca da nossa geração".

O debate em classe começa como reflexo dessa dupla negação - um professor sem vontade e um grupo de alunos que só faz chacotas. Burocraticamente, o educador lança a pergunta: o que é autocracia? Continua: corremos risco de reviver na Alemanha um governo com poderes ilimitados? Resposta pronta dos estudantes, ligados no piloto-automático: claro que não, é impossível, aprendemos com o nazismo, estamos além disso, nossa democracia é sólida. Mas, quando cita os pilares fundadores de um regime autoritário - vigilância, disciplina, nacionalismo extremado, liderança, controle - e apresenta as condições sociais que favorecem o surgimento de tais experiências políticas - desemprego, inflação -, o professor percebe que o grupo sai do estado de letargia e começa a debater, com entusiasmo. A isca tinha sido mordida. O professor percebe de imediato o que havia conseguido. Sugere dez minutos de intervalo. Pensa, andando de um lado para outro. A caixa de Pandora estava aberta.

Na volta à sala, os alunos encontram as mesas rigorosamente alinhadas e ordenadas em fileiras. Duplas tinha sido formadas - na imensa maioria das vezes, eram estudantes que não se suportavam. "Somos um grupo. É preciso pensar coletivamente. Um vai ajudar o outro. Espírito de equipe", justifica o educador. Mais uma ordem: ninguém fala sem autorização do professor (eleito pela turma o líder da equipe). Para falar, é preciso estar em pé, sempre. Ao final da aula, os olhos dos jovens brilham. Havia agora um rumo, um farol a seguir, unidade. "Foi uma energia estranha, que pegou todo mundo", comentaram em casa. 

O que se segue é a construção da identidade do grupo, os laços de pertencimento: marchas (o som dos sapatos sincronizados e ritmados batendo no chão da sala de aula é ensurdecedor; inevitável não lembrar das apresentações e dos desfiles militares nazistas), uniformes (todos de camisetas brancas e calças jeans), valores e código de conduta, gestos e saudações, símbolos visuais e, claro, o nome do movimento - "A Onda". Para disseminar a ideologia, recorrem às novas tecnologias e às redes sociais (de certa forma, o filme antecipa o potencial de mobilização que mais tarde internet e celulares viriam a desempenhar). 

Surgem os confrontos de rua com grupos anarquistas. Adesivos de A Onda são grudados em carros, nas vitrines de lojas, bancos e supermercados. Invadem a cidade. Na calada da noite, sem temer a polícia, um aluno escala os andaimes da prefeitura em reforma e, no topo do edifício, desenha uma gigantesca onda estilizada (assumida como o símbolo do grupo). Não há mais limites para o movimento, consolida-se a sensação de que são invencíveis, de que tudo podem e está ao alcance deles. O professor, o líder (o führer?), conquista finalmente não apenas o respeito, mas a reverência e admiração de seus comandados. Manipula para tirar vantagem e aproveita os dias de fama, já que o projeto que desenvolve com os estudantes é elogiado até mesmo pela direção da escola. Sim, há quem perceba que "a Onda se transformou em algo muito estranho". As duas alunas são imediatamente ignoradas, excluídas e perseguidas pelos adeptos do movimento, que cresce sem parar, conquistando inclusive o apoio de crianças. 

As cenas finais são arrebatadoras - lentamente, a porta se abre e o professor-líder entra em um auditório lotado pelos camisas-brancas de A Onda. Ele lê trechos de textos e impressões produzidas pelos próprios alunos a respeito do movimento, que afirmam que "saímos do tédio, alcançamos significados para nossas vidas, somos todos iguais, temos ideais pelos quais lutar". O espetáculo lembra as gigantescas manifestações nazistas - em clima de histeria coletiva, em êxtase, a plateia explode em gritos e aplausos de aprovação a um contundente discurso anti-globalização do professor, que vocifera: "Podemos tudo. Podemos escrever a história. A Onda é a resposta". Ele pára, repentinamente. E surpreende: "pois acabou. Não há mais A Onda. Fomos longe demais. Recriamos o fascismo". Arrependido, pede desculpas. Mas era tarde demais. A Onda tinha saído de seu controle. Não lhe pertencia mais. 

Importante lembrar que tudo isso acontece em apenas uma semana - é o que basta para o professor conseguir despertar o sentimento reacionário adormecido e chocar o ovo da serpente. Certamente não há modelos prontos e a simples transposição para a realidade seria um exercício intelectual reducionista, mas o filme é fonte de inspiração e referência obrigatória para refletir sobre o fundamentalismo, o racismo, a aversão aos imigrantes, o nacionalismo exacerbado que representa a negação de todos os diferentes, o ódio aos homossexuais, a intolerância e os preconceitos de todas as naturezas - discursos e práticas que se amplificam perigosamente nos Estados Unidos (onde o Tea Party defende que o Estado obedeça a preceitos bíblicos), em países europeus (proibição de uso de véus islâmicos na França, restrições aos imigrantes africanos na Itália, atirador norueguês a rechaçar e condenar o multiculturalismo) e também no Brasil (onde nem mesmo a economia em expansão e a estabilidade política conseguem mascarar suásticas pintadas nos muros de escolas, violência contra casais de homossexuais e ojeriza a negros e nordestinos). 

E para quem acha que há exageros em minhas preocupações, que não há mesmo mais espaço para experiências fascistas no mundo (era o que os jovens de A Onda defendiam no início da história, não?), cumpre destacar que o filme é baseado em uma experiência real, ocorrida em uma escola de Palo Alto, na Califórnia, em 1967.

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