Há séculos, ideia de que ser humano é “em essência” egoísta-competitivo justifica relações capitalistas. Descobertas recentes estão derrubando tal crença.
Marinus van Reymerswaele, O banqueiro e sua esposa
O modelo capitalista de sociedade premia e estimula o comportamento individualista, utilitário e egoísta. Diversos pensadores, como o economista Alan Greenspan, acreditam que tal comportamento apenas reflete a verdadeira essência da natureza humana e, portanto, não há muito a fazer a respeito. Entretanto, essa visão do ser humano foi moldada ao longo da história e, na verdade, os estudos de hoje discordam da noção de que somos essencialmente individualistas e agressivos.
Alguns filósofos, como Thomas Hobbes, John Locke e Adam Smith, contribuíram para a consolidação da ideia de que o ser humano é, por natureza, racional, autônomo, utilitário e voltado principalmente para a satisfação egoísta de seus próprios interesses. As principais instituições políticas e econômicas que hoje moldam a sociedade foram fundadas a partir desses preceitos sobre a natureza humana.
O modelo social adotado pelos princípios capitalistas põe em cena uma perspectiva de Estado-Nação que tem como objetivo estimular as forças do livre mercado e proteger a propriedade privada. O homem é então considerado um indivíduo autônomo e racional que, ao optar por viver em sociedade, acredita que esta é a melhor forma de proteger seus próprios interesses, evitando assim um estado de selvageria natural representado pela expressão hobbesiana “guerra de todos contra todos”.
Da mesma forma que os indivíduos proclamam sua autossuficiência, os Estados são vistos na política internacional como autônomos na busca do próprio interesse. Sob tal perspectiva, as nações encontram-se em eterna batalha em busca de poder e de bens materiais. A narrativa histórica é construída a partir de uma constante dicotomia estabelecida entre Estados e indivíduos isolados, público e privado, termos ocasionalmente unidos apenas por razões de utilidade ou de lucro.
O mito do homem que sobrevive como indivíduo é difundido na literatura universal em heróis como Robinson Crusoé: o homem que consegue, sozinho, através do uso da razão, utilizar a natureza a seu favor e sobrevive sem o auxílio de outras pessoas. Porém, o que não está dito é que Crusoé é um homem adulto, que cresceu em uma sociedade complexa, na qual dependia diretamente de outras pessoas. Além disso, ele apenas aprendeu os conhecimentos necessários para a sua sobrevivência na ilha deserta através do contato com experiências de outras pessoas e outras gerações.
Essa visão filosófica, que se transformou em política, foi naturalizada por um conjunto de teorias científicas. O darwinismo social é uma interpretação estreita da teoria de Darwin aplicada à sociedade humana. Tal teoria enfatiza a ideia de que a evolução se relaciona à competição e à sobrevivência do mais forte, pondo-a em prática na sociedade humana. Dessa forma, características como individualismo, agressividade e competição seriam os agentes naturais da evolução. Argumenta-se que a competição pela sobrevivência fundamenta a evolução humana, a fim de justificar a sociedade capitalista como o modelo natural a ser adotado.
Atualmente, tal noção é considerada bastante reducionista. Já se observou, por exemplo, que não apenas a competição mas também a cooperação entre os indivíduos são fatores de extrema importância na sobrevivência de espécies sociais. Recentes estudos de sociobiologia vêm comprovando a hipótese de que o ser humano é, na verdade, um dos animais mais sociais que existe. Não é difícil comprovar esse fato: vivemos em grupos cada vez maiores, em sociedades cada vez mais complexas com indivíduos interdependentes. Temos a necessidade constante de nos sentir conectados a outras pessoas e de pertencer a um grupo, em um sentimento que remonta às ideias ancestrais de coletividade e de comunidade.
Uma descoberta biológica recente vem corroborar essa ideia. Os neurônios-espelhos fazem parte de um importante sistema cerebral que atua diretamente em nossa conexão com outros indivíduos. Esse conjunto de neurônios é mobilizado quando vemos outra pessoa fazendo algo. Pesquisadores constataram que, quando uma pessoa observa outra realizando uma ação, no cérebro do observador são estimuladas as mesmas áreas que normalmente regem a ação observada. Portanto, ao que tudo indica, nossa percepção visual inicia uma espécie de simulação ou duplicação interna dos atos de outros.
Os neurônios-espelhos são a base do aprendizado e da aquisição da linguagem humana. Mais do que isso, eles tornam fluida a fronteira entre nós e os outros; são a origem da empatia, que é a capacidade de nos colocar no lugar de outra pessoa. Pode-se dizer que, ao observar alguém sorrindo, imediatamente nos sentimos impelidos a sorrir também. Quando percebemos alguém que está em uma situação que causa dor, a reação natural é partilhar o sentimento de dor alheia.
A capacidade empática e a necessidade de fazer parte de um grupo formam as bases, por assim dizer, das religiões organizadas e do sentimento de nacionalismo. O problema é que, ao mesmo tempo em que fomentam a empatia coletiva, estas instituições limitam o sentimento empático pelos indivíduos que não fazem parte do mesmo grupo. Assim, o indivíduo que faz parte de outra ordem — seja ela uma nação, uma religião, uma etnia ou uma classe social — é considerado diferente, distante e, eventualmente, intolerável. Tais rótulos limitam a capacidade empática e impedem de ver o outro como um semelhante na partilha de sentimentos, desejos e angústias intrínsecos à natureza humana.
Um exemplo de que a empatia é natural ao ser humano é a forma como ela ocorre de maneira livre e instintiva nas crianças. Quando uma criança observa outra pessoa em situação desfavorável, como a mendicância e a falta de moradia, a primeira reação é o questionamento. Invariavelmente, as respostas que fazem uso de rótulos auxiliam a explicar a situação: “é apenas um mendigo” ou “é só um menino de rua”. Com frases assim, está-se afirmando que o outro não é alguém como nós; trata-se apenas de alguém diferente, em uma realidade distante da nossa. Portanto, ao estimular constantemente o egoísmo e o interesse individualista, a sociedade baseada no modelo atual desestimula a capacidade empática existente em cada um.
Dessa forma, pode-se afirmar que o desafio do nosso tempo é desnaturalizar o egoísmo social que foi imposto e recuperar nossa empatia natural, não apenas em relação aos grupos de pertencimento, mas sobretudo ampliada em relação a toda nossa espécie.
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