10 março 2012

'É UMA GUERRA CIVIL", DIZ FUNDADOR DO MÉDICOS SEM FRONTEIRAS SOBRE CAOS NA SÍRIA

De acordo com Jacques Bérès, que já atuou em diversas zonas de conflito, situação no país é "catastrófica".

cirurgião francês, Jacques Bérès, de 71 anos, sempre presente em zonas de conflito ao redor do mundo, esteve há menos de 15 dias na cidade síria de Homs, a 35 quilômetros da fronteira com o Líbano, lá onde oficialmente nenhuma grande ONG envia equipes humanitária atualmente. Sitiado há semanas, o terceiro maior município do país é alvo de intensos bombardeios e ataques terrestres durante a ofensiva das forças do presidente sírio, Bashar Al-Assad, contra o movimento de contestação armado que quer a sua queda do governo.

Bérès, em coletiva em Paris: "Bashar al-Assad tem a chave para a abertura de corredores humanitários" - Médicos Sem Fonteiras/Divulgação
Homs se tornou um símbolo da resistência do Exército Livre da Síria (FSA, na sigla em inglês), ao longo da guerra civil que começou em março de 2011 e se agrava a cada dia. De volta à Paris a menos de duas semanas, o cofundador do Médicos sem Fronteiras enfrenta uma verdadeira maratona midiática para denunciar os horrores dos quais foi testemunha. Leia a entrevista concedida ao Opera Mundi:

Opera Mundi - Há uma guerra civil na Síria?
Jacques Bérès – Sim, é uma guerra civil. Não era no início, foi um massacre, a repressão de manifestações pacíficas durante meses. Quando as pessoas são mortas simplesmente por sacudirem cartazes, é melhor pensar em se defender. Um dia, se torna uma guerra civil.

OM – Como o Sr. conseguiu entrar na Síria?
JB – A primeira linha do estatuto do Médicos sem Fronteiras diz que nosso objetivo médico é ir onde outros não podem. Hoje em dia, isso não acontece mais. Tive a sorte de ter sido adotado por duas ONGs: a União das Associações Muçulmanas de Seine-Saint-Denis, (UAM-93), [jovem associação muçulmana que trabalha pela defesa da religião na França, mas desenvolve ações humanitárias em lugares como Faixa de Gaza e Líbia] e a França-Síria Democracia [associação laica que defende a intervenção militar estrangeira na Síria].

Se não temos visto, somos clandestinos e considerados como um “espião norte-americano”. Por isso, é melhor ser enviado por ONGs. É uma espécie de cobertura moral, além da cobertura financeira. Caso eu seja condenado por espionagem, ao menos terei papeis que dizem que não é bem assim e que há pessoas que pensam que se trata de uma operação humanitária. É muito importante.

OM - Recebemos informações da situação na Síria apenas através das agências de notícias internacionais. Qual o cenário que o Sr. encontrou em Homs?
JB - Me lembrou Grozni, na Chechênia. O mesmo tamanho de cidades, a mistura de populações urbanas e rurais e a falta de abrigos anti-bomba. A situação humanitária é catastrófica. Nós atendemos feridos muito graves e em grande quantidade. Há combatentes do Exército Livre da Síria, mas são minoria. A maioria é formada por civis, que estão sendo massacrados. Idosos, homens, mulheres e crianças que são bombardeados intensamente.

É ele, Assad, que tem a chave para a abertura de corredores humanitários, mesmo que seja o mínimo a ser feito. Não é uma solução, é apenas o início do começo de uma solução. A evacuação de feridos foi possível durante certo tempo, para outros distritos de Homs e de lá para o Líbano, mas ultimamente se tornou completamente impossível.

Refugiados dos bombardeios na Síria se juntam às centenas de compatriotas que foram para o Líbano - EFE
Há muitos mortos. Eu tenho todas as razões para pensar que os números de mortos anunciados pela ONU são claramente inferiores à realidade. Os mortos anunciados só são considerados como tais depois de terem identidade reconhecida e serem anunciados na mesquita. Entre os desaparecidos, entre os que estão soterrados entre escombros e os que não tiveram identidade identificada, há com certeza um coeficiente a mais.

OM - A logística da operação foi feita por essas duas associações francesas que garantiram sua entrada e saída do país através do Líbano. Quais foram as condições de atendimento médico encontradas?
JB - Acampamento hospitalar improvisado no nível mais elementar. Precisei me mudar duas vezes, pois fomos vítimas de bombardeios. Estive em uma pequena escola abandonada e em uma casa privada. Nada disso é prático ou conveniente para fazer um hospital. Os doentes têm que chegar por algum lugar e a entrada nunca é o maior cômodo de uma casa.

Depois de colocar quatro pessoas de um lado e quatro de outra, você não pode mais sair dali. É quase impossível tratar feridos da cabeça ou do tronco, nos concentramos em feridos dos membros e abdômen e em alguns casos da associação membros e abdômen. Há também os familiares, que ficam em um espaço proibido; falta água e eletricidade. Eu era apenas um elemento suplementar, tive a sorte de ter sido autorizado a me introduzir em uma estrutura de médicos e cirurgiões sírios que correram o risco de ter um estrangeiro trabalhando com eles.

Os humanitaristas não são bem vindos. O Croissant Rouge Syrien [braço árabe da organização humanitária Cruz Vermelha] sim. Ouvi falar que é suspeito de colaboração com o regime, mas isso não diz respeito só à Síria, é quase uma tradição em vários países do mundo que a presidência do Croissant Rouge vá para a mulher do presidente da República, a mulher do primeiro-ministro, à tia dele.

OM - Quem são os combatentes que o Sr. viu e cuidou?
JB - Os combatentes vêm da população civil. Eles são mais jovens e têm armas para se proteger, mas não tão poderosas quanto as do regime. Têm uma taxa de mortos e feridos que é inaceitável para qualquer exército. Os combatentes são majoritariamente desertores do exército de Assad com suas armas. Inclusive, vi algumas poucas deserções em Homs.

A moral é elevada, eles são corajosos e heróicos, o que não quer dizer que depois venham a fazer a mais bela democracia do mundo. Eu não tenho opinião sobre o regime político que farão depois.


Extraído do sítio Opera Mundi

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