Já existem provas de que Jango foi monitorado por forças de repressão do Cone Sul, garante Maria do Rosário. Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Perto de completar um ano de trabalho desde a sua instalação, em maio de 2012, a Comissão Nacional da Verdade realizou audiência para colher depoimentos das vítimas da ditadura militar no Rio Grande do Sul. Familiares e torturados pelo regime que ainda vivem compareceram ao auditório da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (Ajuris) para reviver os anos de chumbo. O ato teve abertura solene pela ministra dos Direitos Humanos, Maria do Rosário, que salientou a importância do trabalho de investigação da Comissão para recontar a história do país. A Audiência Pública Complementar da Comissão Nacional da Verdade foi conjunta com a Comissão da Verdade do RS e previu essencialmente consolidar dados e depoimentos sobre a Operação Condor e a morte do ex-presidente João Goulart.
Conforme a ministra Maria do Rosário, o caso Jango tem que ser aprofundado. “Eu acredito que não podemos desconhecer os indícios de que João Goulart tenha sido assassinado. A Comissão da Verdade e MPF (Ministério Público Federal) devem ir a fundo nestas investigações. Foi um presidente deposto, era um democrata, tinha sido eleito e na sua memória estão mortes e torturas que muitos brasileiros vieram a sofrer”, disse.
Segundo Maria do Rosário, ainda que o MPF e a Comissão da Verdade ainda estejam em fase de investigação, o caso de Jango já pode ser tratado como assassinato. “Ainda que, com tantos anos de sua morte, não se encontre nenhuma substância em seus restos mortais, não significa que ele não tenha sido assassinado. Porque, de que ele foi perseguido e monitorado permanentemente pelas forças de repressão de todo Cone Sul, já temos provas”, disse.
Outro debate erguido na solenidade de abertura da audiência foi sobre a revisão da Lei de Anistia, que impede a punição a agentes do governo que cometeram crimes durante a ditadura e foi repudiada pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).“Os resultados deste trabalho serão analisados pela sociedade brasileira e poderemos ter um destino para os torturadores diferente do que diz atualmente a Lei de Anistia”, falou.
Manifestações no plenário cobraram responsabilização de agentes ligados à ditadura militar. Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Apesar de sugerir a possível penalização dos agentes que cometeram crimes de tortura entre 1946 até 1988, período de análise da comissão, o julgamento e punição não estão previstos na Lei Federal que criou a Comissão da Verdade no Brasil. “É natural que as vítimas e familiares possam buscar ações judiciais. Como a Lei de Anistia não permite isso hoje, os resultados da Comissão da Verdade poderão dar condições para a sociedade fazer isso”, explica Maria do Rosário.
“A Lei de Anistia ainda pode ser revista”, diz Tarso Genro
A Lei de Anistia do Brasil foi interpretada desta forma pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2010, ao julgar os embargos declaratórios interpostos pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) pedindo a revisão da lei. Também presente ao ato, o governador Tarso Genro foi incisivo ao abordar o tema. “A Lei de Anistia não pode perdoar os torturadores. Esta visão foi consagrada pelo STF, mas é uma decisão que pode ser mudada. Eu aposto que será mudada”, disse o ex-ministro da Justiça. Segundo Tarso Genro, “vozes importantes do STF” estão dispostos a rever a decisão.
“Vozes importantes” do STF estão dispostas a rever Lei da Anistia, garantiu governador gaúcho Tarso Genro. Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Já Maria do Rosário preferiu não aprofundar a posição do governo federal sobre a decisão do STF sobre a Lei de Anistia. “Esta posição do governador é corajosa. Mas o governo federal prefere esperar o resultado do trabalho da Comissão Nacional da Verdade. Reconhecemos como legítima a posição do governador mas, como envolve outro poder, preferimos esperar”, afirmou a ministra.
A Comissão Nacional da Verdade tem até 2014 para investigar os abusos e violações cometidas no Brasil durante o período de 1946 até 1988, em especial na época da ditadura militar, em 1964. O coordenador da Comissão, Paulo Sérgio Pinheiro, diz que “não temos inocência no que estamos fazendo”. Ele disse que o trabalho será sintetizado em um relatório que surtirá efeitos na sociedade. “A competição que a mídia faz atrás de documentos para tentar dizer que não sabíamos de determinados fatos é legítima, mas estamos atentos. Temos acesso a todos os documentos porque somos uma Comissão constituída por lei”, salientou.
Apesar de poder exigir documentos de organismos públicos e privados e convocar depoimentos de pessoas envolvidas na ditadura militar, a escassez de informações e a forma com que muitos foram mortos na época dificultam o trabalho de investigação. A representante da Comissão que apura as violações junto às comunidades indígenas e camponesas, Maria Rita Kehl, salienta que algumas particularidades regionais ou setoriais também influenciam na busca pela verdade. “Em locais como a Amazônia, por exemplo, se misturam disputas com fazendeiros locais, violações por motivação política. Há uma dificuldade em encontrar evidências, documentos ou colher depoimentos”, disse. Segundo ela, outro aspecto que é possível afirmar antes do relatório acabar é que, “a ditadura militar, em termos de violência do estado, apenas agravou práticas de ocupação de concentração da terra existentes em toda a história do Brasil”.
Assinatura do termo de cooperação técnica entre as Comissões Nacional e Estadual foi uma das atividades promovidas em audiência pública na capital. Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Após a solenidade, a audiência pública conjunta com a Comissão da Verdade do RS coletou testemunhos das vítimas da ditadura militar em Porto Alegre. Esta etapa teve um acompanhamento voluntário de profissionais da Associação de Psicanalistas de Porto Alegre. Nas audiências da Comissão Nacional da Verdade geralmente não existe a garantia de atendimento psicológico às vítimas que voltam no tempo da repressão ao contar suas histórias. Dificuldade que será superada a partir de 25 de abril, quando será instalada a Clínica do Testemunho, para apoio aos familiares ou vítimas da ditadura que contribuem com informações para a Comissão Nacional da Verdade.
Carlos Araújo diz que foi torturado na presença de empresários
Em depoimento à Comissão da Verdade, o ex-marido da presidente Dilma Rousseff, Carlos Araújo, fez apelo para que seja investigado o papel do empresariado paulista na ditadura militar. “O núcleo da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) financiava a OBAN (Operação Bandeirantes) e o DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna). Um dos integrantes da cúpula da Fiesp na época está lá até hoje, Nestor Figueiredo. Além de financiar, eles incentivavam a tortura pessoalmente. Não foram poucos que foram para as salas de tortura”, afirmou.
Tortura dos tempos de ditadura foi alimentada por “direita raivosa” que existe até hoje, diz Carlos Araújo. Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Carlos Araújo contou em sua residência em Porto Alegre, em duas horas de conversa com os representantes da Comissão da Verdade, as torturas que sofreu. Nesta segunda-feira, no entanto, ele optou por abreviar seu testemunho, salientando apenas que fez questão de enfrentar as dificuldades de saúde para rever amigos de luta e dizer que acredita no trabalho da Comissão. “Ela vai apurar o que aconteceu. E também tem um cunho político. Não tem como não ter, uma vez que a tortura foi alimentada pela direita raivosa que está entre nós até hoje”, disse, sobre o peso político do futuro relatório.
Depois de ouvir o ex-parlamentar, o coordenador geral da Comissão Nacional da Verdade, Paulo Sérgio Pinheiro garantiu que “o financiamento da repressão é uma das linhas de trabalho da comissão” — uma linha “delicadíssima”, segundo ele. “Não achamos que seja conveniente revelar tudo a cada audiência pública”, disse Pinheiro.
Também foram ouvidos outros ex-presos políticos e familiares de desaparecidos, entre eles Antonio Lucas de Oliveira, Suzana Lisboa e Paulo de Tarso Carneiro. “Eu ouvi, e às vezes ainda ouço, os gritos de dor de um torturado ao som do hino nacional”, disse Antonio Lucas de Oliveira, professor de história preso durante o regime militar por ter abrigado em sua casa um militante de esquerda.
Suzana Lisboa cobrou da Comissão Nacional da Verdade mais integração com os comitês de familiares de vítimas. Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Já Suzana Lisboa, ex-esposa de Luiz Eurico Tejera Lisbôa, cobrou da Comissão Nacional da Verdade mais integração com os comitês de familiares de vítimas. “Fizemos apenas uma reunião desde a instalação da Comissão. Tem coisas que viemos a saber pela imprensa depois. Eu gostaria de saber se podemos conversar sobre isso agora?”, falou, quebrando o protocolo dos depoimentos.
Familiares de vítimas cobram mais diálogo da Comissão Nacional da Verdade
Segundo Suzana, as investigações sobre a ditadura militar nos estados são feitas pelas comissões estaduais, mas de forma complementar, devido a falta de estrutura local. “Nós não temos acesso aos arquivos que estão em São Paulo e no Rio de Janeiro. Temos déficit de pessoal. Gostaríamos de saber se a Comissão Nacional vai deixar para nós isso, porque se for, ficará muito difícil conseguirmos fazer em pouco tempo”, criticou.
Novas informações qualificam relatório da Comissão Nacional, acentua Paulo Sérgio Pinheiro. Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
O coordenador da Comissão Nacional da Verdade, Paulo Sérgio Pinheiro disse que o trabalho das comissões estaduais é fundamental para complementar o trabalho, mas as investigações são feitas pela Comissão Nacional. “Quaisquer novas informações ou casos que surgirem na apuração das comissões estaduais irão qualificar o nosso relatório e dar a verdade de forma mais completa”, ressaltou.
O coordenador da Comissão Estadual, Carlos Guazzelli, apresentou um relatório sobre as primeiras conclusões do grupo. Dados compilados desde o ano passado indicam que mais de 300 pessoas foram presas durante o regime militar. Ao todo seis pessoas foram ouvidas. “Ainda é pouco perto do que gostaríamos, mas estamos sanando a falta de pessoal com um convênio com a Faculdade de História da Ufrgs. Em breve teremos como fazer mais”, disse.
Extraído do sítio Sul21
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