05 junho 2012

PUREZA: OBJETIVO REAL DA TROIKA É DESTRUIR ESTADO DE BEM-ESTAR SOCIAL NA EUROPA

Para professor português, só forças de esquerda genuínas podem evitar que continente se assemelhe à Ásia em relação aos direitos trabalhistas.

O professor português José Manuel Pureza em seminário realizado na San Tiago Dantas, no centro de São Paulo

Longe de tentar resolver a crise no continente, os planos de austeridade fiscal impostos pelo grupo conhecido como Troika (grupo formado pela Comissão Europeia, Fundo Monetário Internacional e Banco Central Europeu) tem outro objetivo: desmantelar as conquistas obtidas durante a era em que o estado de bem-estar social prevalecia no continente.

A afirmação é de José Manuel Pureza, professor de Relações Internacionais pela Universidade de Coimbra e ex-membro do Parlamento português pelo Bloco de Esquerda. Ele se encontra no Brasil para uma série de palestras e, na última quarta-feira (30/05) esteve na PUC (Pontifícia Universidade Católica) de São Paulo, onde explicou e expôs as causas da crise europeia. Ao fim da apresentação, conversou com a reportagem de Opera Mundi sobre as alternativas para enfrentar a recessão.

“A crise é um pretexto para diminuir o valor do trabalho, os direitos sociais e os serviços públicos. O que está em causa é o modelo social europeu. Sua supressão significaria um retrocesso gravíssimo”, afirmou. Para Pureza, a relação de forças que equilibrava o “welfare state” se alterou. O pacto entre capital e trabalho, entre forças conservadoras e progressistas, que defendem a coexistência da acumulação de capital em troca dos direitos sociais efetivos, foi rasgado pelo primeiro lado. Está em curso, segundo ele, um processo de “asiatização” do continente.

Os preconceitos em torno da crise

Pureza explicou que existem três percepções hegemônicas sobre a crise no continente: a de que a ela é unicamente econômica; que sua principal causa é a irresponsabilidade dos países chamados “periféricos”; e que é resultado de o bloco não ter se reforçado institucionalmente no caminho do federalismo. “Não se deve dar valor a nenhuma delas. Porque, ao fim, elas não passam de uma versão ideológica da realidade”, afirma.

A primeira percepção peca por desvalorizar os aspectos políticos da crise, e não questionar os retrocessos democráticos e a falta de governança que vem com ela.

Colonialismo e conservadorismo na Europa: Christine Lagarde, diretora-gerente do FMI, e Soraya Saénz, vice-presidente do governo espanhol

Para Pureza, o segundo lugar comum, que atinge especialmente países como Grécia, Portugal, Espanha e, em parte, a Itália, é o mais grave, pois questiona a capacidade desses países se auto-gerirem. “Essa forma de encarar os fatos é herança de um passado colonial, quando se dizia que alguns povos precisam de outros para serem governados”.

Um eco claro desse preconceito ressoou na semana passada, com as declarações da presidente do FMI, Christine Lagarde, acusando os gregos de não pagarem impostos – embora ela seja isenta de tributação, mesmo recebendo salário de 500 mil dólares. “Esse discurso tem hoje um impacto imenso na mídia e na vida social dos europeus”, diz Pureza.

Junto com essa percepção, Pureza lembra que muitos europeus acreditam que a dívida nesses países é proveniente dos fundos estruturais recebidos nos primeiros anos em que integraram a Comunidade Europeia (exceto a Itália).

A construção da UE

A terceira percepção, de que a crise tem raízes institucionais, segundo Pureza, é focada de maneira errônea. “Institucionalmente, o bloco nunca definiu seu horizonte de maneira clara. Assim, criou um déficit democrático, pois seus principais órgãos, como a Comissão Europeia, se desenvolveram sem a legitimidade do voto popular. A exceção é o Parlamento Europeu. O processo de construção europeu foi construído nessa indefinição”, explicou.

Outro fator institucional que contribuiu para a crise é que o bloco se alargou exponencialmente (dos seis membros originais para os atuais 27) passando a comportar realidades completamente diferentes. As entradas de Portugal, Espanha e Grécia foram, na época, segundo o professor, apostas políticas. “A UE sabia que o mercado comum não suportaria a existência de assimetrias tão grandes, por isso os fundos estruturais. Entretanto, vigorava na época a ideia de coesão econômica e social”.

Tudo mudou, segundo Pureza, com a queda do muro de Berlim: “Perdeu-se a coesão ideológica da UE. Com o fim da União Soviética, essa coesão ideológica perdeu-se em um contexto novo: o triunfo do neoliberalismo”.

O professor lembra que o Tratado de Maastricht, de 1992, muda o processo de integração que cria a UE. “Com as uniões econômica e monetária, os países perdem dois elementos centrais de sua soberania: a emissão de moedas e a política cambial. Em um cenário de crise, ficam sem elementos centrais para criar políticas de recuperação contra-cíclicas. E o crédito era obtido com a desvalorização da moeda”. O custo do Euro veio com a fragmentação dos Estados-membros no controle de sua política econômica. “E a vontade e capacidade dos líderes europeus, não à toa, tornou-se ausente”, explicou.

A consequência

Sob esse cenário, em 2010 ocorreu o estouro das dívidas públicas nos países mais pobres do bloco. “Na grande maioria dos casos, a explosão da dívida resultou de uma instrução da própria UE para que os Estados socorressem a saúde financeira dos bancos. Isso foi logo após a derrocada do Lehman Brothers, em 2008. Os países compraram títulos de dívida para salvá-los. E, para o investidor da bolsa que compra esses títulos, pouco importa se é o “país X” ou a “empresa Y” para ganhar seus milhões”, explica Pureza.

O remédio do bloco para a crise tem sido os programas de ajuste estruturais aos países deficitários em troca de aportes financeiros para que continuem a pagar os juros das dívidas. “O problema é que a dívida grega é maior hoje do que no início da crise. Grécia, Portugal, Espanha e um pouco a Itália são pressionados agora a utilizar a única variável que conseguem ainda controlar: o custo do trabalho [incluindo os serviços públicos e benefícios sociais]. Através de cortes salariais drásticos”, explica Pureza. 

“O discurso de quem defende essa política é de que se está a perder gordura para ganhar músculos. Mas, quando a saúde, a educação e os salários são a gordura, estamos mesmo é no osso, como se diz e Portugal”, diz, arrancando risos da plateia.

A alternativa à esquerda

Ao fim de sua exposição, o professor esclareceu algumas das medidas as quais acredita que podem, de fato, romper com a doutrina recessiva imposta à Grécia e ao seu país. Em especial, uma maior tomada de decisão da população através de plebiscitos para assuntos estratégicos.

No aspecto econômico, lutar pelo fim das privatizações do setor púbico, chegando em muitos casos, a desfazer o que já foi entregue à iniciativa privada. Mas com uma ressalva: “Não podemos optar pela nacionalização de setores sem critério. Em Portugal, fizeram isso com um banco. Nacionalizaram os prejuízos e privatizaram os lucros”, adverte.

Rejeição às imposições da Troika: para Pureza, clareza nas posições explica o sucesso da Syriza na Grécia

Outra medida importante seria a auditoria da dívida pública, para se conhecer com rigor o real valor da dívida. “Os trabalhadores e Portugal não podem ser penalizados por uma dívida que foi contraída por uma política ambiciosa de um banco”, afirma.

Para Pureza, a esquerda europeia tem hoje mais facilidade para esclarecer suas diretrizes. “A esquerda hoje na Europa define-se por contraste com as políticas da Troika. Não é possível ser esquerda sem uma ruptura clara com a recessão, o desemprego e a desvalorização do trabalho que ela nos impõe. Essa foi a razão pela qual a Syriza (Coalizão da Esquerda Radical) cresceu na Grécia e pode ganhar as eleições: não fazer qualquer transigência”, afirmou.

E ironiza as correntes políticas que ainda insistem no meio-termo: “Esse é o dilema pelo qual passa hoje a social-democracia europeia. Vive na ilusão de que é possível se harmonizar com a Troika. Não é. O resultado do Pasok (Partido Socialista Pan-Helênico) na Grécia mostra como essa suposta esquerda afunda”.

Pureza não está otimista nem mesmo com a vitória do socialista François Hollande na França. “Foi uma vitória importante para aumentar a pressão política contra a Troika. Mas não acredito que a política francesa virou por inteiro. Veremos em pouco tempo decisões que são definidoras por parte de Hollande. Ou aposta no crescimento e no emprego em escala europeia ou vamos ter mais do mesmo, um ‘Sarkozy simpático’. Não é disso que a esquerda precisa”, afirma.


Extraído do sítio Opera Mundi

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