21 junho 2012

A DIREITA QUE NÃO OUSA DIZER SEU NOME - Luiz Marques

“Falo somente do que falo:
do seco e de suas paisagens”
João Cabral de Melo Neto

Francisco Weffort, ex-ministro da Cultura do governo Fernando Henrique Cardoso, utilizou um conceito religioso, “conversão”, para explicar a transição de José Sarney aos valores democráticos após servir à ditadura militar. O mesmo aplica-se ao ícone da corrupção brasileira, deputado federal Paulo Maluf. Ambos pertenceram aos quadros civis do autoritarismo de botas e converteram-se à democracia liberal, tornando-se apologistas da liberdade de expressão e organização, bem como críticos da prisão e da tortura de oposicionistas, coisa que antes apoiavam. Ao menos da boca para fora, diga-se de passagem. Numa palavra, fizeram-se adeptos das “regras do jogo”.



A conversão em questão, que aconteceu em escala nacional, foi condição para a consolidação de uma nova ordem social e política, sem fraturas na sociedade. Deu-se em toda a América Latina e, em um outro grau de tencionamento na história recente, na África do Sul. A Comissão da Verdade e outros órgãos do gênero criados para restabelecer a memória sobre o passado não confrontavam e não confrontam o processo de conversão. Buscam livrá-lo do manto do cinismo político que promoveu um eclipse na luta político-militante contra a usurpação da vontade geral pelos representantes fardados de verde-oliva das elites econômicas.

Pode-se classificar de oportunismo, mimetismo ou estratégia de sobrevivência a atitude desses personagens de infausta lembrança, remanescentes de um período repleto de barbáries. A adjetivação não muda o fato de que a redemocratização incorporou figuras emblemáticas do Mal, onde ocorreu a transmutação de regime político. No Brasil, no entanto, aqueles que travam um permanente combate às forças democráticas e progressistas usam a aproximação dos partidos políticos da centro-direita com a centro-esquerda a título de argumento para desqualificar a última, colocando o foco seletivo em líderes do obscurantismo para turvar as águas. Pura tergiversação. A intenção não é moralizar, é desmoralizar.

Devemos lamentar que a aliança do PT com o PMDB resulte em uma foto de Lula com Sarney. Idem, quando a aproximação com o PP em São Paulo conduz a uma foto de Lula e Maluf, embaralhando e confundindo biografias tão opostas em nome de uma “ética da responsabilidade” em relação ao futuro da cidade. Não devemos desconhecer, porém, que as coalizões envolvem estruturas partidárias e, no caso, mais 1 minuto e 35 segundos de propaganda televisiva na campanha eleitoral, o que pode ser decisivo à competitividade política nas urnas em uma sociedade de massas.

As circunstâncias obrigam a um pragmatismo para vencer as eleições e garantir a governabilidade na sequência, embora isso traga muitas confusões programáticas na consciência do eleitorado, em especial quando se estica em demasia o arco das alianças. Para alguns, tal significa o ocaso das ideologias e o fim da luta de classes. Na verdade, significa que os embates agora acontecem em uma realidade de alta complexidade, exigindo um discernimento maior e mais sutil.

O que chama a atenção em episódios tão inusitados é a reação dos “novos cães de guarda”, na expressão de Andrés Nin, retomada por Serge Halimi no Le Monde Diplomatique. Os jornalistas comprometidos com o status quo, sabujos do patronato e do neoliberalismo, cuja agressividade oculta um servilismo canino, exploram a contradição aparente para desacreditar a moral pública daqueles que defendem e desenvolvem em postos administrativos políticas contra as desigualdades sociais, de modo transparente e republicano.

Agem como se fotografias de Lula com Sarney ou Maluf deslegitimassem a vontade política anti-neoliberal em prol de uma mobilidade social que levou quase 40 milhões de pessoas (praticamente uma Argentina, uma Espanha, uma Bélgica) das classes E e D para as classes médias. Mantêm os olhos fechados à política de desenvolvimento sustentável e distribuição de renda, à expansão federal do ensino técnico e universitário, aos investimentos em infraestrutura e energia que modificaram o perfil sócio-econômico desse País.

O espanto da mídia comercial, encenado de forma teatral como Serra fez ao ser atingido por uma bolinha de papel, não é um convite à veritá effetuale (verdade efetiva das coisas). Não provoca uma reflexão sobre o Sistema de Representação Política em vigor, nem sobre os motivos que bloqueiam a Reforma Política no Congresso. Contenta-se com desgastar as instituições políticas, sem se questionar sobre a quem possa interessar partidos políticos enfraquecidos e sem respeitabilidade frente à opinião pública.

Não faltam então os chamados âncoras midiáticos para elogiar “a razão de Luiza Erundina” (PSB) ao renunciar à vaga de vice na chapa de Fernando Haddad (PT) na capital paulista. Ninguém se engane com a mise-en-scène. Seria interessante, a propósito, conhecer a “razão” desses comentaristas para fazer dia após dia a defesa do Estado mínimo com os chavões toscos do fracassado Consenso de Washington.

Como tantos, estou convencido de que a melhor crítica às coligações com figuras emblemáticas e deletérias da política tradicional é formulada pela esquerda que busca aliar-se sobretudo ao povo organizado. Em hipótese nenhuma, pela direita que não ousa dizer o seu nome nos meios de comunicação.

* Luiz Marques é professor de Ciência Política da UFRGS

Extraído do sítio Sul21

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