06 fevereiro 2012

A VALE MERECE MESMO SER A PIOR EMPRESA DO MUNDO? - Lúcio Flávio Pinto

No dia 26 do mês passado a mineradora brasileira Vale foi eleita a pior corporação do mundo no Public Eye Awards, com sede em Zurique, na Suíça, criada pelo Greenpeace suíço e a Declaração de Berna, que se apresenta como "o Prêmio Nobel da vergonha corporativa mundial”. Desde 2000, o Public Eye é concedido anualmente à empresa vencedora, escolhida por voto popular, em função de problemas ambientais, sociais e trabalhistas, durante o Fórum Econômico Mundial, na cidade suíça de Davos.


A antiga estatal Companhia Vale do Rio Doce foi indicada junto com mais cinco empresas internacionais: Barclays, Freeport, Samsung, Syngenta e Tepco. Das 88 mil pessoas que votaram, através da internet, 25 mil escolheram a Vale. As entidades que lideraram a campanha contra a mineradora a apresentaram como uma multinacional típica, presente em 38 países e com impactos espalhados pelo mundo, o que serviria para atrair o interesse de moradores dessas nações.

Os organizadores do prêmio levaram em consideração a participação societária que a Vale passou a ter, em meados de 2010, no Consórcio Norte Energia, responsável pela construção da hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, "fator determinante para a sua inclusão na lista das seis finalistas” do prêmio.

Na nota que distribuíram a respeito, as entidades que pediram votos contra a mineradora disseram que a vitória da Vale foi comemorada em nome das "milhares de pessoas, no Brasil e no mundo, que sofrem com os desmandos desta multinacional, que foram desalojadas, perderam casas e terras, que tiveram amigos e parentes mortos nos trilhos da ferrovia Carajás, que sofreram perseguição política, que foram ameaçadas por capangas e pistoleiros, que ficaram doentes, tiveram filhos e filhas explorados/as, foram demitidas, sofrem com péssimas condições de trabalho e remuneração, e tantos outros impactos, conceder à Vale o titulo de pior corporação do mundo é muito mais que vencer um premio. É a chance de expor aos olhos do planeta seus sofrimentos, e trazer centenas de novos atores e forças para a luta pelos seus direitos e contra os desmandos cometidos pela empresa”.

Em um hotsite criado especialmente para divulgar a candidatura da Vale foram listados alguns dos principais problemas de empreendimentos da empresa no Brasil e no exterior. Já sabendo disso, a empresa criou seu próprio site com o objetivo de contestar cada um desses itens. A relação das acusações (em negrito) e do sumário das respostas (em itálico) constitui uma agenda do contencioso da empresa, segundo a visão dos seus críticos, que merece servir de guia:

Compra recente de grande parte do Complexo da Usina Hidrelética de Belo Monte: A aquisição pela Vale de participação no projeto de Belo Monte (9%) é consistente com a estratégia de crescimento da empresa, garantindo o suprimento de parte de suas necessidades futuras no Brasil

Abuso repetido dos direitos humanos e condições de trabalho desumanas: A Vale respeita e promove os direitos humanos em todas as suas atividades dentro de sua esfera de influência

Deslocamento forçado de pessoas em Moçambique: Todas as famílias envolvidas participaram totalmente do processo de reassentamento

Danos ambientais para os povos indígenas da Nova Caledônia: A Vale e as comunidades locais na Nova Caledônia assinaram um pacto de desenvolvimento sustentável para a região sul

Graves problemas de saúde entre as comunidades vizinhas à UPR de Monte Líbano: A acusação foi provada sem fundamento, após pesquisa detalhada realizada pela AVAM nos arredores da UPR Monte Líbano

Problemas com a legislação ambiental relacionados com o projeto S11D: O S11D [para duplicar a produção de minério de ferro de Carajás]está de acordo com o procedimento legal padrão para a obtenção da sua licença ambiental

Greves de longa duração no Canadá e enfraquecimento sindical na Colômbia: A Vale tem o maior respeito pelos sindicatos trabalhistas e acredita na resolução pacífica das questões

A responsabilidade por 4% do total das emissões de CO2 do Brasil: A Vale não é responsável por 4% das emissões totais de CO2 do Brasil e é, neste momento, a única empresa latino-americana no Índice de Liderança em Divulgação de Emissão de Carbono (CDLI)

O despejo de 114 milhões de metros cúbicos de efluentes em rios e oceanos: A Vale cumpre rigorosamente a legislação ambiental em relação ao tratamento e descarte de efluentes

Está enfrentando 111 processos legais e 151 investigações criminais: A Vale é transparente em relação aos seus processos legais e os relata em seu Relatório Anual de Sustentabilidade

Com essas respostas, a empresa pode achar que desfaz os argumentos dos que a combatem, mas sua iniciativa não é suficiente para mudar sua imagem negativa. Ficou claro que ela só foi a vencedora nessa sondagem internacional por causa dos votos dos brasileiros. Pode-se alegar que o universo eleitoral foi muito pequeno, não era representativo e sofreu de um mal de origem, com a tendenciosidade da maioria dos votantes.

No entanto, eles representaram de fato a posição que parte da opinião púbica assumiu em relação à Vale. Pelos mesmos motivos ou por outros, sob a mesma linha de raciocínio ou segundo outros tipos de abordagens, eles consideram negativo o balanço dos prós e contras da Vale.

É impossível não entender a situação polêmica, e às vezes incômoda da empresa, a contrastar com seu enorme sucesso financeiro, sem voltar à privatização da Vale, feita pelo governo Fernando Henrique Cardoso, em abril de 1997. Nem é preciso tratar do baixíssimo valor de venda do controle acionário da maior produtora de minério de ferro do mundo, por 3,3 bilhões de dólares.

Esse valor continua a ser (e se torna cada vez mais, na medida do maior esclarecimento) um escândalo. Mas há uma consequência que só fez crescer desde então: o papel do Estado na maior e mais valiosa das empresas que foram privatizadas no Brasil.

De forma direta ou indireta, o governo federal detém mais de 60% do capital votante da Vale. É quase o dobro das ações que possui na Petrobrás (32%). Não se fala da privatização da estatal do petróleo, como se outros acionistas que se reunissem tivessem mais peso do que Brasília.

No caso da Vale, o poder público ainda ficou com um tipo de ação especial, a golden share, que lhe permite corrigir os rumos da companhia se ela se desviar dos termos do edital de leilão e da sua configuração de então, que era estatal. Como o governo não usou o seu poder de controlador para impedir que a Vale caminhasse numa direção contrária ao desejo do seu principal dono?

Lula esbravejou com Roger Agnelli, o presidente que mais durou no comando da companhia, por 10 dos seus (agora) 70 anos. A rusga começou em 2008, levando à demissão de Agnelli quase três anos depois. Por que tanto tempo e celeuma se o governo podia ser mais eficiente sem precisar ser boquirroto, agindo?

A divergência de fundo entre os dois se baseava na demissão de 1.800 funcionários da Vale durante a primeira crise financeira internacional deste século e na exigência do presidente da república para que a Vale também atuasse na siderurgia e não apenas na mineração, conforme Lula achava ser a estratégia de Agnelli.

O executivo, originário do Bradesco, maior sócio privado, caiu, e Murilo Ferreira assumiu. Tudo aparentemente mudou e tudo, em substância, permaneceu o mesmo. Na verdade, ou a empresa está fazendo o que, no íntimo, o governo quer, ou então o governo não sabe, de fato, fazer diferente, dar efeito concreto à sua retórica de mudança. Talvez porque a Vale se tenha tornado grande demais para a própria envergadura do Estado nacional brasileiro.

A Vale é a maior empresa privada da América Latina. É a segunda mineradora do mundo, atrás apenas da BHP/Billiton. Tem 500 mil acionistas espalhados pelos cinco continentes, nos quais atua, em 38 países, com 126 mil funcionários. É responsável por metade das exportações brasileiras com o produto que está no topo do ranking, o minério de ferro.

No ano passado bateu o recorde histórico de produção: 308 milhões de toneladas. Entre 65% e 70% desse minério vai para a Ásia, em especial para a China (80% do mercado asiático), o país que mais se expande no mundo. Proporciona 10% do saldo líquido de divisas do Brasil, que nunca faturou tanto.

O balanço da empresa, prometido para divulgação no próximo dia 15, deverá registrar um lucro líquido recorde, de 30,1 bilhões de reais, dos quais 6 bilhões de dólares (ou R$ 11 bilhões) serão distribuídos como dividendos aos acionistas, 50% a mais do que em 2010, algo sem equiparação no mercado brasileiro. Em 2010 a Vale ultrapassou momentaneamente a Petrobrás. Seu valor de mercado passava de 300 bilhões de reais.

Neste ano pretende investir US$ 21,4 bilhões, 69% no Brasil. Sua capacidade de investimento é bem superior à do governo brasileiro, que, para fazer obras num ano eleitoral, promete que fazer o que menos gosta: cortar seus gastos de custeio.

A modelagem do leilão, feita pelo Bradesco, visou privatizar a Vale sem tirar-lhe a estrutura de estatal. A busca pelo crescimento acelerado e o lucro multiplicado incrementou essa estrutura de governo, dando à nova Vale uma fisionomia bifronte: ora de empresa privada, ora de governo.

Por isso, é mais do que uma multinacional. Que multinacional opera oito portos, sendo que dois deles (Ponta da Madeira, em São Luiz do Maranhão, e Tubarão, em Vitória do Espírito Santo) estão entre os maiores do mundo? E que multinacional ainda ganharia mais concessões para interligar entre si essas duas vias expressas de exportação, uma delas (Carajás) com o maior trem de cargas do mundo? Que multinacional manteria sob seu controle monopolístico 9 mil quilômetros de linhas férreas? E teria direitos minerários sobre 280 mil quilômetros quadrados em um único país?

É coisa demais para caber na agenda de uma empresa privada, por mais poderosa que ela seja. A Vale tinha, até ser privatizada, outra glória: a maior frota de navios graneleiros do mundo. Toda essa frota foi alienada na gestão Agnelli, sem qualquer reação por parte da opinião pública e do governo.

Quando o faturamento do frete, sobretudo para China, adquiriu tamanho lucrativo fascinante, o percurso foi invertido: de uma só vez Agneli encomendou a estaleiros da China e da Coreia do Sul 18 dos maiores navios de transporte de minérios de todos os oceanos, cada um deles com capacidade para 400 mil toneladas. Na divisão, a Coréia recebeu sete navios e US$ 748 milhões, enquanto à China foram pedidos 12 navios, ao custo de US$ 1,6 bilhão.

No dia 19 do mês passado o primeiro desses gigantes, o Vale Rio de Janeiro, completou a primeira viagem completa do novo ciclo e chegou ao mais movimentado porto do mundo, o de Rotterdam, na Holanda. Foi recebido com admiração e espanto mesmo por olhos acostumados a esses mastodontes flutuantes. Só não chegou com a carga completa por causa do lastro: para entrar no canal do porto teve que deixar no Brasil 14 mil toneladas. Viajou com 386 mil. Ainda assim, a maior carga de minério de todos os tempos a circular pelos mares.

Mas onde pode aportar esse monstro de aço carregado de sua matéria prima? Mesmo com a encomenda de parte dessa frota, que deverá ser concluída no próximo ano, a China está criando problemas para receber os cargueiros da Vale nos seus portos. Não é problema insolúvel, claro.

Nada que um acerto de preços e uma composição de fretes não resolvam. Mas é problema surgido depois da decisão de reconstituir a frota, que foi vendida a preço de sucata, quando a Docenave estava em plenas condições de continuar a transportar o minério, como vinha fazendo com êxito até então.

Há outro problema. O primeiro dos cargueiros trazidos da Coréia do Sul (mas foi batizada como Vale Beijing, em homenagem à capital do país que é o maior cliente de todos), em sua operação inaugural, rachou ao embarcar minério no porto de São Luís. Por pouco não foi a pique na baía de São Marcos, uma ameaça ecológica, ambiental e econômica.

Agora sua carga está sendo retirada com cuidado, depois do esgotamento do combustível, para que ele volte ao ponto de origem e se restabeleça. E os outros? E qual o montante do prejuízo que a empresa e o país sofreram pela decisão de acabar com a frota da Docenave e, só anos depois, reconstruí-la em estaleiros estrangeiros?

Esta não é apenas uma questão de defender os estaleiros nacionais, já que um navio com bandeira brasileira também se deu mal na primeira viagem. É uma questão de maior transcendência: o Brasil está se beneficiando o quanto seria possível da exploração das suas riquezas pela Vale? Devia mesmo estar exportando tanto? Os acionistas estão à frente de todos na colheita dos resultados, tirando para si o que devia ser mais bem distribuído, inclusive aos que participam diretamente do processo produtivo?

Se o título negativo concedido à Vale, mesmo que à custa de argumentos inconsistentes, tiver o efeito de chamar a atenção da sociedade brasileira para uma história que se desenrola aos seus olhos sem atrair a sua participação, terá valido à pena a votação.

Extraído do sítio da Adital

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