29 fevereiro 2012

A NOVA GUERRA FRIA JÁ COMEÇOU NA SÍRIA - Robert Fisk

Foi bom saber, pelo secretário de Relações Exteriores britânico, que “não estamos apoiando a ideia de alguém atacar o Irã neste momento”. Talvez mais tarde, então. Ou talvez depois de o presidente Assad cair, privando o Irã de seu único – e valioso – aliado no Oriente Médio. É disso que se trata, eu suspeito, esse monte de rugidos vociferando contra Assad. Livre-se de Assad e você estará cortando parte do coração do Irã. Se isso vai levar Ahmadinejad a transformar suas usinas nucleares em fábricas de leite, bem, isso já é outro assunto. O artigo é de Robert Fisk (The Independent).

“Se o Irã obtiver armas nucleares, eu acho que outras nações em todo o Oriente Médio vão querer desenvolver armas nucleares”.

Assim trovejou o nosso amado secretário de Relações Exteriores, William Hague, em um dos pronunciamentos mais ridículos que já fez. Hague parece passar muito de seu tempo representando diferentes personagens, então realmente não estou certo de qual Sr. Hague fez esta declaração.

O erro número um, é claro, é o fato do Sr. Hague não mencionar que já existe uma nação do Oriente Médio que já possui centenas de armas nucleares juntamente com os mísseis para dispará-las. Ela se chama Israel. Mas o Sr. Hague não mencionou esse fato. Ele não sabia disso? Claro que sim. O que ele estava tentando dizer, veja só, é que se o Irã seguir querendo produzir uma arma nuclear, os Estados árabes – Estados muçulmanos – vão querer adquirir uma. E isso não pode acontecer. Não lhe ocorreu mencionar a ideia de que o Irã pode estar tentando desenvolver armas nucleares porque Israel já as possui.

Agora, como uma nação que vende bilhões de libras de equipamento militar para países do Golfo Pérsico – para eles se defenderem de planos não-existentes do Irã para invadi-los -, a Grã-Bretanha não está propriamente em condições de advertir sobre a proliferação de armas na região. Eu fui às feiras de armas no Golfo, onde os ingleses mostraram filmes alarmantes sobre uma nação “inimiga” ameaçando os árabes – o Irã, é claro – e falando da necessidade dos países árabes comprarem mais kits da British Aerospace e dos nossos demais mercadores da morte.

Em seguida, a conversa de Hague pratica um assassinato histórico. Ele adverte sobre “o mais grave capítulo de proliferação nuclear desde que as armas nucleares foram inventadas”, que poderia produzir “a ameaça de uma nova Guerra Fria no Oriente Médio”, o que seria “um desastre mundial”. Eu sei que Hague senta-se na sala de Balfour e Eden – dois pseudo-especialistas em Oriente Médio -, mas será que ele tem mesmo que maltratar a história desse jeito? Certamente a rodada mais grave de proliferação nuclear ocorreu quando a Índia e o Paquistão adquiriram a bomba, está última uma nação inundada por grupos ligados a Al-Qaeda, talibãs e duvidosos agentes de serviços de inteligência.

Foi bom saber que “não estamos apoiando a ideia de alguém atacar o Irã neste momento”. Talvez mais tarde, então. Ou talvez depois de o presidente Assad eventualmente cair, privando o Irã de seu único – e valioso – aliado no Oriente Médio. É disso que se trata, eu suspeito, esse monte de rugidos vociferando contra Assad. Livre-se de Assad e você estará cortando parte do coração do Irã. Se isso vai levar Ahmadinejad a transformar suas usinas nucleares em fábricas de leite para criança, bem, isso já é outro assunto. Aqui está a questão central. As vozes poderosas que pedem a saída de Assad aumentam mais de volume na medida em que se recusam a se envolver na sua derrubada. Quanto mais eles se comprometem a não “meter a OTAN” na Síria, cada vez que dizem que não podem haver zonas de exclusão aérea na Síria, mais e mais ficam furiosos com Assad. Por que ele não parte simplesmente para sua aposentadoria na Turquia, acabando com o teatro de uma vez por todas, e parando de envergonhar a todos nós, coagindo seu país com bombas, francos atiradores e milhares de assassinatos, entre eles o de jornalistas.

Desnecessário dizer que Hague também tagarela sobre a Síria, supostamente também não “apoiando a ideia de alguem atacar a Síria neste momento”. E esse é um problema que fede muito para o ministro das Relações Exteriores. Ela estava justamente denunciando o assassinato de Marie Colvin esta semana – eu a vi nos últimos dias da revolução egípcia, avançando, como de costume, em meio ao estouro de granadas de gás lacrimogêneo -, mas centenas de outros seres humanos inocentes foram cruelmente assassinados na Síria sem que isso provocasse um sussurro sequer de Hague. Alguns deles foram mortos pela oposição armada a Assad. O assassinato de alauitas por sunitas está se tornando terrivelmente familiar, assim como a matança de civis por fogo de artilharia do governo sírio se tornou um modelo nesta guerra terrível.

Não, nós não vamos nos envolver na Síria, muito obrigado. Porque a nova Guerra Fria na região, papagaiada por Hague, já começou na Síria, não no Irã. Os russos estão alinhados contra nós lá, apoiando Assad e denunciando-nos. Só que a reação de Putin a uma substituição de Assad é um mistério. Não será uma “nova” Síria, necessariamente, a democracia pró-Ocidente que Hague e outros gostariam de ver.

Os sírios, afinal não vão esquecer a maneira pela qual os britânicos e os americanos silenciosamente aprovaram o massacre infinitamente mais terrível de 10 mil sírios muçulmanos sunitas em Hama, em 1982. Este ano marca o 30º aniversário desse massacre, praticado pelas Brigadas de Defesa de Rifaat Ali al-Assad, tio do atual presidente Assad.

Mas, como Hague, Rifaat também tem seu “doppelgänger” (termo alemão para sósia ou duplo de uma personagem). Longe de ser o assassino de Hama – um termo que ele contesta ferozmente -, ele agora é um senhor simpático e aposentado, vivendo em grande estilo e em segurança muito próximo da mesa de Hague. Na verdade, se Hague sair do prédio do Ministério das Relações Exteriores e dobrar à esquerda ele pode encontrar e conhecer o homem pessoalmente em – onde mais ele poderia viver? – Mayfair (área nobre no centro de Londres). Agora, isso seria um desastre para os assuntos mundiais, não?

Extraído do sítio Carta Maior

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