06 fevereiro 2012

EMILIANO JOSÉ: "O ESPÍRITO MALIGNO DA PM DA BAHIA SE VOLTA CONTRA O POVO"

O governo da Bahia precisa correr contra o tempo, para desarmar a bomba que é a Polícia Militar da Bahia. Não se pode dizer que não se sabia. Uma tese acadêmica do professor Georgeocohama mostrou o espírito autoritário da Polícia, ao analisar a greve da PM em 1981. Não por acaso, o jornalista, professor e hoje deputado federal Emiliano José assinou o prefácio do livro de Ocohama. Desde o golpe militar de 1964, a PM baiana se constituiu no braço armado voltado para reprimir manifestações populares.

E a violência, pode-se dizer, vem sendo o método de trabalho da PM baiana, entranhada na corporação pela ideologia do carlismo. Chega a ser ridículo, os discursos oportunistas de políticos como o deputado ACM Neto (DEM) e do deputado derrotado José Carlos Aleluia. O guru deles, ACM, incutiu na PM a ideologia da violência. Agora, este espírito maligno se volta contra o povo da Bahia.



Leia na íntegra a análise de Emiliano no livro de Georgeocohama:

Quando a greve da Polícia Militar baiana de 1981 ocorreu, eu trabalhava na sucursal do jornal O Estado de S. Paulo, em Salvador, como repórter. Para os jornalistas de então, um fato inusitado. Estávamos acostumados a cobrir a ação da PM no decorrer de movimentações de operários e estudantes, e tal ação revestia-se sempre de um cunho repressivo. A PM, nos anos posteriores a 1964, especialmente até o fim da ditadura em 1985, se constituiu no braço armado mais prontamente à disposição das classes dominantes para reprimir quaisquer movimentos populares.

Era a PM que tornava dramaticamente real o lado coercitivo do Estado brasileiro. Em todo o País, simultaneamente ao controle a que foram submetidas pelo Exército, as PMs foram modernizadas em sua aparelhagem repressiva, modernização que se expressava no maquinário de guerra de combate às manifestações de rua. Assim perplexos, cobríamos aquela greve.

A análise do professor Georgeocohama sobre as causas daquele movimento revela muita ousadia. Enfrentou tema pouco visitado pela Academia. O livro que agora ganha as ruas foi escrito há mais de 20 anos. Tem, quem sabe, os defeitos de uma análise feita a quente, mas também as qualidades desse tipo de incursão.

Só os bons historiadores, os menos acomodados, são capazes de produzir obras assim: poderíamos chamá-las de análise de conjuntura, numa visão bastante ampliada dessa noção; ou, para ousar avançar por terreno conceitual desconhecido, denominá-la de história mergulhada no acontecimento.

Ao fazê-lo, o autor contribuiu para abrir a vereda que tem possibilitado uma discussão ampliada sobre o papel das PMs numa sociedade democrática. Inegavelmente há um vezo preconceituoso entre as esquerdas, ontem mais do que hoje, em analisar o papel dos militares na vida política brasileira, salvo sob o ângulo da repressão, da violência, do arbítrio, características marcantes da ação militar num País acentuadamente marcado pelo autoritarismo.

A discussão sobre a PM baiana e o movimento grevista de 1981 implica análise aligeirada sobre o Estado brasileiro, especialmente o moderno Estado construído desde os anos 30 do século passado. Esse Estado constituiu-se à base de estruturas mais ou menos autoritárias, que passaram pela ditadura getulista do Estado Novo, pelo populismo nacionalista da primeira metade dos anos 50, pelo desenvolvimentismo de Juscelino, pelo reformismo de Goulart e pela modernização conservadora da ditadura pós-64.

O crescimento da sociedade civil, de modo geral, sempre enfrentou obstáculos, sejam aqueles menos coercitivos, como os levantados pelo populismo, sejam os repressivos, como os do Estado Novo.

O crescimento do movimento operário-popular em 1964 provocou a reação das classes dominantes e redundou em ditadura. A marca autoritária em nossa história não é pequena. Os militares, não por acaso, acreditaram-se demiurgos de um projeto nacional, baseado na Doutrina da Segurança Nacional, cuja inspiração, também não por acaso, veio dos EUA, fundada em pressupostos da Guerra Fria, marcada então por um anticomunismo visceral.

Tal doutrina desenvolvia a tese do inimigo interno, que justificava todas as violências praticadas contra aqueles que tinham uma visão diversa. Desde o final dos anos 40, esse tipo de visão esteve presente em nossa história, e corporificou-se com absoluta transparência em 1964 e naqueles anos seguintes de terror e de sombras.

A presença militar era tão forte que, para selar o fim da ditadura, fez-se uma espécie de pacto com as Forças Armadas, baseado numa anistia que perdoava os torturadores e assassinos dos porões repressivos. É possível que não houvesse outro caminho dado à correlação de forças do momento, mas o fato é que isso ocorreu. A sociedade civil e a sociedade política não conseguiram desenvolver até muito recentemente mecanismos institucionais que colocassem as Forças Armadas sob controle, na dependência de regras democráticas sólidas.

Só após o fim da ditadura, em 1985, iniciou-se um processo, relativamente lento, onde, paulatinamente, as Forças Armadas passaram a se submeter de forma mais clara aos ditames da lei. Isso foi possível devido à dinâmica interna – a democratização da sociedade brasileira –, e externa –, o fim da Guerra Fria, com o desmoronamento de toda a experiência socialista na URSS e nos países do Leste Europeu.

Recente episódio – o da revelação pela imprensa de fotos de prisioneiros nus nos porões da ditadura – mostrou a autoridade do presidente Lula sobre os militares, evidenciando que os tempos são outros, mais democráticos. Vamos caminhando de modo mais rápido e seguro para uma sociedade amparada na lei.

Para dizer de forma simplificada, se tentarmos situar o episódio analisado por Georgeocohama, podemos dizer que as PMs de então eram um subproduto do quadro nitidamente autoritário que predominou até 1985. Enquadradas rigorosamente após 64, elas foram submetidas aos interesses e conceitos globais do Exército, a instituição que dá as cartas nas Forças Armadas. Passam, então, a ser “tropa de choque” do Estado brasileiro para “sedições internas”, especialmente as movimentações urbanas, das greves operárias às manifestações estudantis.

A greve de 1981, com as conseqüências trágicas dela decorrentes, talvez seja um daqueles momentos em que a PM da Bahia toma consciência de si mesma, recusa-se a ser simples massa de manobra, embora, como é evidente, limite-se a seus interesses meramente corporativos, temendo até a solidariedade de outros setores sociais, o que decididamente reduziu o alcance do movimento.

As paixões do momento não foram sistematizadas numa orientação política conseqüente, como foi diagnosticado pelo professor Georgeocohama corretamente. Não custa lembrar movimento recente, de 2001, quando outra greve, e esta com impressionante participação da soldadesca, colocou Salvador em estado de choque e o governo paralisado. Essa movimentação, à espera de análises mais cuidadosas, produziu alguns líderes, um dos quais, sargento Isidório, tornou-se deputado estadual pelo PT com expressiva votação.

A história registra movimentos de soldados como momentos heróicos, evidência de um alto grau de politização. Não custa lembrar a Revolta da Chibata, do marinheiro João Cândido, contra os castigos absurdos de que era vítima a marujada. Ou a luta dos sargentos por seus direitos no pré-64, objeto até hoje de muitas discussões.

Ou, mais distante de nós, a extraordinária participação de soldados na Revolução Russa. A politização dos soldados, no Brasil pós-64, no entanto, foi reprimida de todas as maneiras. Greves em corporações como a PM não são boas companhias da democracia. São perigosas para todos se se tornam incontroláveis. Estamos falando de homens – e agora mulheres – armados.

A greve de 2001 foi um exemplo disso. Quando se prolongou por vários dias, criou uma situação de caos social em Salvador. No primeiro momento, recebeu o apoio da população, que sabia dos baixos salários e péssimas condições de trabalho dos soldados, sargentos e mesmo oficiais.

Num segundo momento, o povo fechava-se em casa com medo e queria o fim rápido do movimento. A PM, nesse caso, saiu relativamente fortalecida. Houve, por caminhos tortuosos, o reconhecimento do quanto ela é necessária, embora não se possa desconhecer o quanto ela precisa mudar para se tornar uma polícia cidadã, que tenha como missão principal proteger o cidadão e cidadã comuns.

As diferenças entre os dois movimentos não são pequenas, e posso lembrar alguns deles, arriscando-me a palpitar. O primeiro é que o de 1981 não teve o alcance de massa que teve o de 2001. Aquele foi uma ação concentrada na ousadia de alguns oficiais. O segundo aspecto é que o de 1981 foi barrado de modo sangrento – a lembrar que o governador biônico era Antônio Carlos Magalhães, prócer querido da ditadura – enquanto que o de 2001 acabou sendo resolvido pela negociação, em decorrência especialmente da ação de parlamentares da oposição, que praticamente socorreram um governador inerte, quase perplexo diante da greve.

Os tempos eram outros. Já não era mais possível mandar matar, como em 1981. O terceiro é que a movimentação de 2001 durou um bom número de dias, teve um impressionante impacto político-social e obrigou o governo a ter mais atenção com a PM, enquanto que a de 1981, estancada na ponta do fuzil, acabou rapidamente e suas conseqüências nem de longe se aproximaram das de 2001.

Mas tudo isso é palpite. O que importa aqui é a análise feita por Georgeocohama a respeito da movimentação de 1981. É essa ousadia dele que nos convida a uma reflexão sobre a PM na sociedade que vivemos hoje, muito mais democrática.

Nos tempos mais recentes, desincumbida parcialmente da tarefa anterior de reprimir movimentos populares, devido à situação democrática, a PM, educada para a violência, continuou como “tropa de choque” contra os pobres e negros, especialmente nas grandes cidades. A questão posta para todos nós, que temos compromisso com a continuidade da democratização da sociedade brasileira, é a definição do papel dos militares na vida política nacional, e aí inclui-se também as polícias militares.

Aqui, pode ocorrer a um leitor mais atento lembrar, acompanhando Norberto Bobbio, ser o Estado sempre um instrumento de repressão, o que ninguém contestaria. Mas isso não quer dizer, e isso também é Bobbio, que todos os Estados sejam igualmente repressivos. Nós, aqui e agora, queremos um Estado democrático, com os militares submetidos aos ditames da lei, incluindo-se aí a PM enquanto ela existir, para que se garanta um estado de paz civil.

É necessário que se estimulem ouvidorias autônomas das PMs de modo a facilitar ao cidadão e à cidadã recorrerem dos arbítrios, das violências, contribuindo para uma vigilância efetiva da sociedade civil sobre a instituição. É fundamental que seja incrementada a educação dos efetivos da PM no campo dos direitos humanos. Não podemos, em nome de uma teoria abstrata do Estado como instrumento da repressão, descuidar da importância de uma espécie de revolução cultural entre os policiais militares.

É possível forjar um novo espírito, que fortaleça mais o aspecto preventivo do que o repressivo. Um espírito que faça os policiais militares enxergarem cidadãos no negro pobre, no sujeito sem posses. Um espírito que pretenda sempre, em primeiro lugar, proteger o povo. Sem isso, continuaremos a assistir a essa impressionante guerra civil que assola o País principalmente nas grandes cidades.

Ninguém ignora a necessidade da repressão contra a criminalidade de qualquer natureza, especialmente contra o crime organizado, e no quadro institucional ainda vigente, a PM cumpre um papel importante. Mas é preciso um novo espírito para que a população pobre e trabalhadora não continue a ser a principal vítima.

* Emiliano José é jornalista, escritor e deputado federal (PT-BA).

Extraído do sítio Viomundo de Luiz Carlos Azenha

Nenhum comentário:

Postar um comentário