19 setembro 2012

O PULMÃO DO CAPITALISMO NORTE-AMERICANO - Serge Halimi

Em 1992, o presidente dos Estados Unidos fez a seguinte declaração: “O sucesso do Walmart é o sucesso da América”. Agora, a multinacional de distribuição é a maior empresa do mundo. E o dumping social que pratica – baixos salários, pressão sobre os fornecedores etc. – contamina a economia ocidental. 

Ilustração: Mello
Nalargada, uma pequena loja num dos estados (Arkansas) mais pobres do país. Na chegada, um volume de negócios girando em torno de US$ 421 bilhões em 2010, uma família com quatro de seus filhos entre as dez pessoas mais ricas do planeta, uma cadeia de hipermercados que se tornou ao mesmo tempo a maior empresa – ultrapassou a Exxon Mobil em 2003 – e o maior empregador privado do mundo. Em 2005, as vendas do Walmart sozinhas respondiam por um em cada cinco CDs comprados nos Estados Unidos, um em cada quatro tubos de pasta de dente, uma em cada três fraldas. E, ainda mais significativo, 2,5% de todo o PIB norte-americano!1 Mais rica e influente que 150 países, a empresa deve às regras estabelecidas o poder que exerce hoje.

Com esse nível de poder, não é de surpreender que a maioria das transformações (econômicas, sociais, políticas) do planeta tenham tido sequência – e às vezes também origem, transmissão, aceleração –em Bentonville, Arkansas, sede da companhia. Combate aos sindicatos, transferências para outros países, uso de uma mão de obra superexplorada que a desregulamentação do trabalho e os acordos de livre-comércio tornam a cada ano mais prolífica: esse é o modelo Walmart. Pressão sobre os fornecedores para obrigá-los a diminuir os preços arrochando os salários (ou mudando para o exterior); flexibilização das tarefas para favorecer seu encadeamento e eliminar qualquer tempo morto, qualquer mínima pausa: esse é o modelo Walmart. Construção de prédios hediondos (“caixas de sapatos”), abastecidos pela frota de 7.100 caminhões gigantes da empresa, que rodam e poluem 24 horas por dia a fim de entupir sem atraso os porta-malas dos milhões de automóveis alinhados nos imensos estacionamentos de cada uma das quase 5 mil lojas que a multinacional explora: esse é o modelo Walmart.

“Especialistas em comunicação”

E então, quando os sindicatos contra-atacam, quando os ambientalistas despertam, quando os clientes finalmente fazem a conta de que “o menor preço” é um roubo, quando artistas se esquecem por um instante de se vender para apoiar o movimento popular, quando cidadãos impedem a instalação de novos cubos de concreto em seus territórios, é ainda o Walmart que, agora, recruta antigos “especialistas em comunicação” da Casa Branca, democratas ou republicanos, e pede que limpem a imagem da empresa, inundando os meios de comunicação.2 Eles dirão: agora o Walmart é “ético” e só pensa em criar postos de trabalho – verdade que são mal pagos, mas melhor pouco do que nada, e os clientes gostam tanto dos preços baixos... Eles acrescentarão que a busca obstinada pelo lucro ajudou a melhorar a produtividade nacional. E que doravante a empresa defenderá o meio ambiente, assim como resgatou as vítimas do furacão Katrina. Exploração, comunicação: sempre um modelo...

Nenhuma empresa vira a maior do mundo por acaso, só porque, cinquenta anos atrás, seu fundador, Sam Walton (falecido em abril de 1992, poucos dias após receber das mãos do ex-presidente George Herbert Bush uma das mais altas honrarias norte-americanas), teve a brilhante ideia de vender melancias na calçada da loja e oferecer aos filhos dos clientes um passeio de burro no estacionamento.3

Nascimento e crescimento

O primeiro Walmart foi aberto em 1962, em Rogers, Arkansas, numa área rural e abandonada. Nove anos depois, a empresa tinha ampliado sua esfera de influência a cinco estados. Seus primeiros mercados, de fraca densidade, eram ignorados pelos grandes varejistas: o Walmart assentaria aí seu monopólio, antes de estender-se para outros lugares. A empresa privilegia a periferia dos centros urbanos para aproveitar, ao mesmo tempo, a clientela das cidades e o preço baixo dos terrenos. Antecipando em 1991 o Tratado de Livre Comércio da América do Norte (Nafta), que o presidente Bill Clinton, ex-governador do Arkansas, ratificou dois anos depois, o Pequeno Polegar de Bentonville internacionalizou-se e desembarcou no México. Seguiu-se o Canadá, em 1994. Depois vieram Brasil e Argentina (1995), China (1996), Alemanha (1998), Reino Unido (1999). Em 2001, as receitas do Walmart ultrapassaram o PIB da maioria dos países, incluindo a Suécia. O Carrefour, número dois do setor (101 bilhões de euros em volume de negócios em 2010), que o Walmart pensava em comprar em 2004, está internacionalmente mais presente. Mas a empresa fundada por Sam Walton conta com um trunfo: os 100 milhões de norte-americanos que passariam a procurar os everyday low prices (“preço baixo todo dia”) que ela oferece.

Baixos eles são. Em média, 14%.4 Mas a que preço? A questão é essa. A resposta, contudo, difere se a preocupação é com o indivíduo-cliente em busca das melhores ofertas ou com os funcionários dos fornecedores de uma empresa suficientemente poderosa para forçar todo mundo a manter – e reduzir – seus custos. Para que o cliente do Walmart se abasteça, o trabalhador tem de sofrer... Para que o preço do Walmart e de seus fornecedores sejam sempre os mais baixos, é necessário também que as condições sociais se deteriorem ao seu redor. Portanto, é melhor que os sindicatos não existam. Ou que os produtos venham da China.5

Arrocho salarial

A esquizofrenia do cliente que economiza com tamanha determinação a ponto de ajudar a empobrecer o produtor que ele próprio é pode parecer teórica e longínqua. Considerando o poder que o Walmart exerce (cerca de 8% das vendas no varejo dos Estados Unidos, fora o setor automobilístico), a contradição logo se torna real e imediata. Assim, a empresa de Bentonville orgulha-se dos “US$ 2.329 por ano” que ela “permite que as famílias trabalhadoras economizem”; a companhia afirma que em 2004 aumentou o poder de compra de cada norte-americano em US$ 401 em média e, no mesmo ano, levou à criação, direta ou indireta, de 210 mil postos de trabalho (é a ideia de que o dinheiro economizado pelos clientes foi dirigido a outros consumos, impulsionando, portanto, as atividades econômicas em outros lugares).

Os adversários da multinacional têm em mente cifras menos sedutoras. O preço baixo não cai do céu: ele se explica, em parte, pelo declínio de 2,5% a 4,8% do rendimento médio dos empregados de cada condado norte-americano em que a multinacional se instalou. A empresa deprime os salários nos locais onde é instalada. Ela cria as condições para oseveryday low prices. Consequentemente, multiplica o número de clientes que logo não poderão fazer outra coisa a não ser economizar em suas prateleiras.

Isso porque, entre o pote de ferro dos distribuidores e os potes de barro dos terceirizados, funcionários da multinacional e grandes supermercados rivais, o “jogo do mercado” opera um triplo efeito de deflação salarial. Primeiro, em razão do domínio de uma empresa pouco pródiga em relação a seus “associados” (termo usado para se referir aos trabalhadores). Depois, por conta da destruição da maior parte da concorrência ou de sua obrigação, para sobreviver, de alinhar-se à desvalorização social. Por fim, e principalmente, em consequência dos contratos autoritários que o Walmart impõe aos fornecedores, inclusive Estados, frequentemente determinando os preços (em 2002, por exemplo, a empresa comprou 14% dos US$ 1,9 bilhão de produtos têxteis exportados aos Estados Unidos por Bangladesh).

Aversão aos sindicatos

Ao longo de suas peregrinações, a empresa de Bentonville nunca abriu mão de duas de suas características originais: o paternalismo e a aversão aos sindicatos. As coisas são realmente simples para o 1,3 milhão de “associados” do Walmart nos Estados Unidos: não há sindicatos. Mona Williams, porta-voz da empresa, explicou o fato: “Nossa filosofia é que somente associados infelizes querem fazer parte de um sindicato. Mas o Walmart faz tudo o que está em seu poder para oferecer-lhes o que querem e precisam”. Desde que, bem entendido, não “precisem” demais: “É verdadeiramente realista”, pergunta Mona, “pagar US$ 15 ou US$ 17 por hora para alguém abastecer prateleiras?”.6 O CEO da empresa, Lee Scott Jr., não abastece prateleiras. Desse modo, ele pôde, na mesma época, receber US$ 17,5 milhões.

Para melhor se proteger dos sindicatos, cada gerente de loja tem um “conjunto de ferramentas”. Ao primeiro germe de descontentamento organizado, ele aciona um alerta que despacha de Bentonville um jatinho trazendo um quadro do alto escalão da companhia. Em seguida, aplica-se durante vários dias a pedagogia da casa, infligida aos “associados” para expurgar as más tentações. Em 2005, porém, não foi isso que aconteceu: os “associados” de uma filial do Quebec [Canadá] quiseram ser representados por um sindicato. O Walmart fechou a loja, e explica: “Essa loja não teria sido viável. Avaliamos que o sindicato queria alterar de cabo a rabo nosso sistema de operação habitual”.7 Um ano depois, a empresa foi condenada a US$ 172 milhões de multa por ter se recusado a dar aos empregados uma pausa para o almoço. Forçando um pouco, Jesse Jackson, candidato democrata à Casa Branca em 1984 e 1988, chegou a comparar as prateleiras da multinacional às plantations, lembrando as condições de trabalho dos campos de algodão do Sul dos Estados Unidos.

Quando o Walmart chega, o pequeno comércio fecha as portas. Desde que a empresa se instalou em Iowa, em meados dos anos 1980, o estado perdeu metade de suas mercearias, 45% das lojas de ferramentas e 70% das confecções masculinas. Utilizando o registro habitual do “populismo de mercado” da direita norte-americana, a empresa garante, no entanto, que não faz nada além de defender os consumidores sem dinheiro que, legitimamente, reivindicam “o menor preço” a grupos de produtores glutões ou varejistas detentores de remunerações indefensáveis. Já a multinacional tem a vantagem de ser “eleita” diariamente pelos dólares de clientes organizados em pacientes filas diante das caixas registradoras de suas lojas...

* Serge Halimi é o diretor de redação de Le Monde Diplomatique (França).

1 The Wall Street Journal, Nova York, 3 dez. 2005.
2 Por exemplo, Michael Deaver, que assessorou o presidente republicano Ronald Reagan, e Thomas McLarty, que fez o mesmo para Bill Clinton. Sobre as técnicas que usaram e ainda usam, ver “Faiseurs d’élections made in USA” [Fabricantes de eleições made in USA], Le Monde Diplomatique, ago. 1999.
3 História contada por George H. Bush em março de 1992, quando ofereceu a Sam Walton a Medalha Presidencial da Liberdade.
4 Steven Greenhouse, “Walmart, driving workers and supermarkets crazy” [Walmart, enlouquecendo trabalhadores e supermercados], The New York Times, 19 out. 2003.
5 Ver Jean-Christophe Servant, “Petites mains du Sud pour firme du Nord” [Mãozinhas do Sul para empresa do Norte], Le Monde Diplomatique, jan. 2006.
6 The Wall Street Journal Europe, 7-9 nov. 2003.
7 International Herald Tribune, Neuilly-sur-Seine, 11 mar. 2005.

Extraído do sítio Le Monde Diplomatique Brasil

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