19 dezembro 2012

NO MUNDO DE MURDOCH - Luiz Gonzaga Belluzzo


Arrisco a dizer: o relatório Levenson é a mais corajosa e serena crítica aos abusos e malfeitos da mídia contemporânea. O relatório é tão destemido em sua ousadia como a Areopagítica de John Milton ao pregar a liberdade de impressão em 1644, no auge da Revolução Inglesa. Milton resistia a Cromwell e à reintrodução da “licença de ­publicação”, hoje conhecida como censura prévia.

Esta edição de CartaCapital também corajosamente disseca os pontos mais importantes do relatório. Não vou repetir a narração dos fatos, exaustivamente tratados nas cinco páginas anteriores. Peço, no entanto, licença ao leitor para reproduzir argumentos que já esgrimi nos anos 1990 a respeito das diferenças entre liberdade de expressão e liberdade de imprensa.

Vou começar com Paul Virilio, importante pensador francês da atualidade. Ao analisar as transformações do papel dos meios de comunicação na moderna sociedade capitalista de massa, Virilio chegou a uma conclusão tão óbvia para os cidadãos de boa-fé quanto negada pelos senhores do aparato midiático. A mídia, diz ele, é o único poder que tem a prerrogativa de editar as próprias leis, ao mesmo tempo que sustenta a pretensão de não se submeter a nenhuma outra. Mas a liberdade de expressão não se esgota na liberdade de imprensa. A liberdade de imprensa só se justifica enquanto realização da liberdade de expressão dos cidadãos livres e iguais, os legítimos titulares do sagrado e inviolável direito à opinião livre e desimpedida.

Essa reivindicação da cidadania torna-se mais importante na medida em que os meios de divulgação e de formação de opinião têm se concentrado, de forma brutal, no mundo inteiro, nas mãos de grandes impérios capitalistas, como os construídos pelo australiano Ruppert Murdoch. Esse imperador midiático não trepidou em utilizar a chantagem contra políticos pusilânimes, como o “novo” trabalhista Tony Blair e o janota conservador David Cameron.

Metido até o pescoço em negócios que envolvem o Estado e seus funcionários, Murdoch mobilizou suas forças para conseguir o controle da emissora de televisão BSkyB valendo-se dos serviços e pareceres de certo Adam Smith, conselheiro do então ministro da Cultura Jeremy Hunt. Os Smith de nome Adam já foram melhores.

A peculiaridade da mercadoria colocada à venda juntou o objetivo natural e legítimo de ganhar dinheiro ao desejo de ampliar a influência e o poder sobre a sociedade e sobre a política. A acumulação monetária já implica necessariamente a acumulação de poder e de influência. Ao brandir a superioridade da liberdade de opinião e de informação pro domo sua, os senhores da mídia se recusam a submeter ao livre debate as transformações ocorridas ao longo dos sé­culos XIX e XX na chamada esfera pública. Quando sua legitimidade é questionada, imediatamente gritam: Censura! E assim sufocam qualquer crítica a seu desempenho como provedores de informação e amordaçam os reclamos de maior diversidade.

Murdoch e seus competidores abusaram da manipulação, da construção da notícia, da censura da opinião alheia e da intimidação sistemática das vítimas dos assassinatos morais. Mas o ty­coon australiano não estava nem está só. Na Inglaterra e em outras partes do planeta, o poder que esconde seu nome não descansa em sua faina de produzir cadáveres.

Por essas e outras, foi dura a reação das famílias e dos indivíduos torturados no pau de arara dos grampos ilegais e dos homicídios morais. Reagiram com indignação aos comentários apaziguadores do peralvilho Cameron, mais uma vez imponente no papel de defensor dos patrões de Fleet Street. O Parlamento inglês mobiliza-se para ate­nuar os estragos e responder às exigências de 80% da população que concorda com os ofendidos.

Acossada pela opinião pública, a secretária de Cultura, Maria Miller, tratou de convocar os editores dos principais jornais para reconstruir o ambiente regulatório da imprensa. Esse espaço é ocupado desde 1991 pela Press Complaints Comission, formada por representantes das empresas de comunicação. Um jornalista do Guardian sugeriu que essa forma de regulação poderia ser equiparada a um julgamento de crimes de estupro por um corpo de jurados composto por violadores contumazes.

É tragicamente curioso que os valores mais caros ao projeto da Ilustração, as liberdades de expressão e de opinião, tenham se transformado em instrumentos destinados a conter e cercear o objetivo maior da revolução das luzes: o avanço da autonomia do indivíduo. Não bastasse, os ímpetos plebiscitários colocam em risco o sistema de garantias destinado a proteger o cidadão das arbitrariedades do poder, público ou privado.

Sob a aparência da democracia ­plebiscitária e da justiça popular, perecem os direitos individuais, fundamentos da cidadania moderna, tais como construídos ao longo da ascensão liberal-burguesa e consolidados pelas duas revoluções dos séculos XVII e XVIII.

Extraído do sítio Revista CartaCapital

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