03 abril 2012

A DEMOCRACIA PLENA E OS DIREITOS DE CIDADANIA APONTAM PARA ALÉM DO CAPITALISMO - Iraci del Nero da Costa*


A democracia - entendida aqui como a estrita obediência às decisões tomadas pela maioria, conforme normas de legalidade permanentes e consensuais e com total observância do respeito devido aos direitos e à livre expressão e organização das minorias - assim como os direitos de cidadania - os quais, a nosso juízo, consubstanciam, obviamente num todo uno, o conjunto dos direitos do homem e do cidadão - assumiram, no século XXI, papel central quanto ao caminho futuro da história da humanidade e, em particular, quanto aos destinos das correntes políticas de esquerda.

A condicionar tal relevância primordial conjugam-se quatro fatores deletérios basilares: a definitiva derrocada do socialismo real; o processo de globalização o qual se caracterizou, basicamente, pela mundialização dos interesses das grandes corporações e conglomerados econômicos e do qual decorreu a internalização de tais interesses por parte das nações periféricas; a maneira irracional e calcada em inverdades da reação dos EUA em face dos ataques terroristas pelos quais foram vitimados e o caráter reacionário do pensamento ideológico que, a contar de então, passou a predominar largamente no seio de alguns de seus principais grupamentos políticos e, por fim, o novo papel assumido pela China tanto no âmbito político como, sobretudo, no cenário econômico mundial. Consideremos mais detidamente os fenômenos aqui apontados e as implicações políticas que deles poderão decorrer.

A superação efetiva do chamado socialismo real trouxe, para a ordem do dia dos teóricos da esquerda de corte marxista, como item essencial, a necessidade de um verdadeiro aggiornamento ideológico. Parece ter ficado evidenciado claramente representarem a democracia e os direitos de cidadania componentes fulcrais de qualquer formulação comprometida com o estabelecimento de uma sociedade apta a oferecer ao homem condições de vida material e de existência espiritual superiores às vigentes no modo de produção capitalista. Logo, é impossível pensar-se uma nova forma de sociabilidade - socialista, caso se queira chamá-la assim - sem admitir que ela terá de assentar-se, necessariamente, sobre três princípios fundamentais: a inexistência da propriedade privada sobre os meios de produção, a vivência democrática e o absoluto acatamento dos direitos de cidadania tomados em sua integralidade; sobre estas questões, permitimo-nos lembrar o artigo de COSTA, Iraci del N. & MOTTA, José F. Hegel e o fim da história: algumas especulações sobre o futuro da sociabilidade humana. Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política. Rio de Janeiro: Editora 7 Letras, n. 7, dez. 2000, p. 33-54.

Destarte, garantir a plena vigência da democracia e "lutar" pelo socialismo, além de se mostrarem tópicos políticos indissociáveis, correspondem a um só e único objetivo, não podendo, portanto, ser contemplados como instâncias táticas e/ou estratégicas distintas.

Fixado este primeiro ponto, atenhamo-nos às questões suscitadas pela globalização.

A adoção de práticas econômicas ditadas pelos neoclássicos e incorporadas pela ideologia neoliberal acarretou, tanto em países mais avançados como em nações subdesenvolvidas, um leque de retrocessos socioeconômicos no qual compareceram, com distintos graus de intensidade, as seguintes mazelas: especulação financeira desenfreada e descontrolada, maior concentração da renda e da riqueza, desindustrialização e dependência crescente com respeito à exportação de bens primários; a par disso, aumentou a dependência dos mais pobres com respeito a práticas assistencialistas do Estado e não ocorreram mudanças significativas no âmbito dos serviços sociais em geral: saúde, educação, segurança e habitação. Correlatamente, em muitas nações o desemprego atingiu níveis dramáticos e a emigração desordenada aumentou substantivamente, de sorte a afetar a vida de milhões de pessoas a cujas carências materiais somaram-se incontáveis padecimentos de ordem moral e o dolorido desenraizamento com respeito às suas plagas natais. Não obstante o tamanho incomensurável dos prejuízos já havidos, notadamente nas nações europeias em crise poderão vir a se dar novos cortes na esfera econômica e na órbita de direitos trabalhistas de há muito adquiridos.

Enfim, para os desprivilegiados, a globalização sinonimiza com perdas econômicas e políticas, sendo de se esperar a ocorrência de mais pressões nesses dois campos. Assim, apenas a resistência democrática e a reconquista dos direitos perdidos serão capazes de barrar os avanços das práticas lesivas impostas pela globalização. Disso se infere a existência de um elo imediato entre o combate ao neoliberalismo e a ação voltada à defesa dos direitos democráticas e de cidadania.

Vejamos, num terceiro lapso, os problemas afetos à traumática atuação político-militar, em escala planetária, dos norte-americanos.

Embora a guerra promovida no Afeganistão contra seus ex-parceiros do Talibã e da Al Qaeda e a desencadeada no Iraque contra um outro seu ex-aliado representem a continuidade da política intervencionista norte-americana, sobretudo a aventura contra Saddam Hussein, enriqueceu sobremaneira o currículo do militarismo dos EUA. Como sabido, a motivação aventada para a derrubada do regime iraquiano cingiu-se a um aranhol de mentiras e de informações forjadas as quais não resistiram à análise mais superficial e encontraram na ONU e nos próprios parceiros dos EUA seus primeiros críticos; isso para não lembrar os norte-americanos isentos que, desde a primeira hora, postaram-se contra o discurso insano de George W. Bush e as descabidas operações de guerra por ele capitaneadas. De toda sorte, o mínimo a dizer é que a farsa tragicamente encenada no Iraque significou um golpe dos mais fortes contra as normas consensualmente pactuadas no âmbito da ONU e consagradas pelo direito internacional e uma clara falta de subordinação à verdade dos fatos, sem a qual é impossível imaginar-se um mundo autenticamente democrático.

Ademais, as humilhações, torturas e cerceamento extremado dos direitos - internacionalmente reconhecidos - dos prisioneiros mantidos, no passado e no presente, nas prisões norte-americanas existentes no Afeganistão, no Iraque e em sua base cubana de Guantánamo demonstram como as forças militares norte-americanas estão dispostas a levar a negação dos direitos de cidadania a pontos extremados. 

Em suma, a união das teses de políticos conservadores com os interesses da indústria de armamentos e os de conglomerados econômicos ligados aos mais variados ramos econômicos representa, juntamente com o processo maior de globalização, uma séria ameaça às liberdades, pois a persistência de tal aliança conduzirá à limitação crescente, em nível mundial, da democracia e dos interesses da cidadania. Mesmo Barack Obama, cujas numerosas promessas quando candidato à presidência representaram para muitos de seus eleitores uma esperança de renovação de grande porte, chega ao fim de seu primeiro mandato com um pequeno acervo de realizações positivas.

Nesse quadro bastante conturbado vimos desabrochar, em toda sua plenitude, a China, ou melhor, uma "nova" China: soberana pela concretização, segundo velocidade ímpar, de seu imenso potencial econômico, mas cujo regime político, altamente concentrado, distingue-se por ser absolutamente fechado e discricionário. Ali, como em muitas outras nações, as liberdades veem-se coarctadas e os direitos de cidadania negados. Além disso, é forçoso reconhecer não estarmos, na China, em face de um sistema socioeconômico socialista, pois, enquanto sua vida política é regida de maneira ditatorial, sua economia pode ser tomada como um tipo híbrido de capitalismo no qual se encontram presentes tanto a iniciativa estatal como a privada; vale dizer, o governo chinês permaneceu avesso a mudanças de cunho político, mas aderiu abertamente a uma prática econômica dominada pelo capital. Eis descrito, pois, o último dos quatro fatores adversos anotados acima.

Como se depreende do exposto, esse conjunto de elementos negativos indica as evidentes e crescentes insuficiências do modo de produção capitalista com respeito à geração de condições favoráveis ao avanço da democracia e ao alargamento dos direitos de cidadania. Paralelamente, a indicar a insatisfação popular que se generaliza planetariamente, podemos arrolar episódios históricos da maior significância, tais como a Primavera Árabe, o movimento "Ocupe Wall Street" e a mobilização das populações das nações europeias contra a implementação de programas de "ajuste econômico" inspirados em moldes restritivos quanto a direitos econômicos das camadas detentoras de rendimentos mais modestos.

Disso não se infere, evidentemente, estarmos a vivenciar o surgimento de um novo mundo, pois se deve concluir, tão somente, o quão limitado é o "mundo" no qual nos encontramos: o mundo do capital!

Restam explicitados, assim, os entraves do capitalismo com referência à democracia e aos direitos de cidadania; dessarte, a ação das esquerdas pela reconquista e ampliação de direitos terá de se ocupar das forças retrógradas, de sorte a assegurar a efetivação das resoluções democraticamente alicerçadas e impedir o solapamento do Estado de direito. A luta pela democracia e pelos direitos de cidadania, ítens indispensáveis à constituição de uma eventual sociabilidade a ser instaurada futuramente, aponta, pois, para além das limitações próprias do modo de produção ora dominante.

Obviamente, com esta nossa constatação não pretendemos propor, aos que tomam o socialismo como algo desejável, um programa de atuação política consubstanciado, unicamente, na defesa da democracia e dos aludidos direitos. Abalançamo-nos, no entanto, a afirmar que, na elaboração da referida plataforma, deve ser emprestada importância máxima aos dois fatores aqui realçados. 

* Professor Livre-docente aposentado da Universidade de São Paulo.

Extraído do sítio do Pravda

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