19 abril 2012

AMIGO DE CIVITA, BUCCI QUER INVESTIGAÇÃO SOBRE IMPRENSA FORA DA CPI


Ex-presidente da Radiobrás e professor de Jornalismo, Eugênio Bucci defende a transparência nos meios de comunicação, ma non tropo.

O jornalista Eugênio Bucci, ex-presidente da Radiobrás no primeiro governo Lula e atualmente professor da Escola de Comunicação e Artes da USP, entra hoje num dos temas mais polêmicos da CPI sobre Carlos Cachoeira: as relações entre a imprensa e o crime organizado. Amigo e consultor eventual de Roberto Civita, dono da Editora Abril que deve ser convocado pela comissão, Bucci defende que a imprensa seja transparente, desde que essa discussão não passe por uma CPI. “É nessa medida que o assunto é de interesse público: embora não seja propriamente objeto de CPI, que se instala para investigar um fato concreto, deve ser esclarecido pela própria imprensa, uma vez que interessa à sociedade”.

Mas e se a imprensa agir de forma corporativista, Bucci? Por que não permitir que as práticas sejam discutidas com ampla transparência numa CPI? Lembrando que, na Inglaterra, uma sociedade bem mais democrática do que a brasileira, o magnata Rupert Murdoch se viu forçado a depor sobre as relações entre o News of the World e os grampos clandestinos.

Leia, abaixo, o artigo de Bucci, publicado no Estado de S. Paulo:

Imprensa livre é imprensa transparente - Eugênio Bucci

Os defensores de uma CPI mista sobre o escândalo Demóstenes-Cachoeira anunciaram há dois dias que já têm em mãos assinaturas sobrando para instalá-la. Coletaram 67 nomes no Senado Federal e outros 340 na Câmara dos Deputados, bem mais do que o mínimo necessário, de 27 no Senado e 171 na Câmara. Sem trocadilho, parece mesmo que as águas vão rolar. "Doa a quem doer", teria dito um alto dirigente petista, com o propósito de dirimir quaisquer dúvidas quanto a uma vontade velada de seu partido de refugar e abafar a investigação. No dizer de estrategistas palacianos, a CPI poderá "respingar" no governo Dilma Rousseff (dando curso às metáforas líquidas que o episódio enseja), mas, mesmo assim, parece que ela vem aí. "Doa a quem doer", repetiu uma liderança do combalido Democratas. Chegamos assim àquele ponto de não retorno, ou, se quisermos dizer a mesma coisa no linguajar do cancioneiro popular, daqui para a frente "não dá mais para segurar". O coração do submundo da política poderá, sim, explodir, e aí vai doer em muita gente. Caixas-pretas correm o sério risco de ser viradas pelo avesso. Água mole em pedra dura, sabe como é.

Alguém já disse que esta, sim, será "a CPI do fim do mundo", o que é bastante improvável. Como de costume, nessas horas o alarmismo sobe de tom, ganha constrangedora estridência, à beira da histeria. Os parlamentares e seus partidos que fiquem com o medo para eles - do ponto de vista da cidadania, quanto mais roupa suja for lavada em público (sigamos com as imagens aquosas), melhor. Quanto mais transparência, mais daremos razão a Hillary Clinton, segundo quem a presidente Dilma teria firmado um novo "padrão global" no combate à corrupção. Que assim seja.

No meio desse mar tão revolto, açoitado por tempestades verbais, não necessariamente cerebrais, há um tema paralelo que vem crescendo. Trata-se de um aspecto específico que raramente ocupa lugar nas páginas dos jornais: as relações entre esses esquemas de corrupção - como o de Carlinhos Cachoeira - e a imprensa. Isso não é objeto de CPI, naturalmente, mas deveria merecer mais destaque na pauta jornalística. O tema não deveria ser jogado fora junto com a água suja - ele é de interesse público. A questão é: em que termos ele é de interesse público?

Uns e outros já se apressaram a sentenciar que qualquer jornalista que entreviste ladrão presta serviços à bandidagem, num arroubo que, além de moralista, é falso, bastante estulto e, talvez, pérfido, mal-intencionado. E por quê? Muito simples. Levemos em conta que, por aqui, nenhum partido olha os antecedentes criminais de seus assim chamados "quadros" - ao contrário, uma boa folha corrida pode até mesmo ser critério de promoção nas instâncias partidárias. Nesse ecossistema, a atividade de cobrir a política requer de seus praticantes a rotina insalubre de conversar com vigaristas. Obrigatoriamente. Fora isso, o jornalismo sempre teve o dever de ouvir os fora da lei. É parte do ofício, parte dos afazeres de uma imprensa que se quer livre. Exatamente por isso, quanto mais forem visíveis e claros os procedimentos de repórteres que escutam assaltantes do erário, melhor para a instituição da imprensa e também para o cidadão.

É nessa medida que o assunto é de interesse público: embora não seja propriamente objeto de CPI, que se instala para investigar um fato concreto, deve ser esclarecido pela própria imprensa, uma vez que interessa à sociedade. Mais que isso: o esclarecimento desse tema ajudaria a sociedade a entender melhor a investigação jornalística e por que essa investigação não pode faltar, nunca, nos regimes democráticos. É um equívoco supor que, exposto nos jornais, esse assunto abriria caminho para os que atacam a liberdade de imprensa. Ao contrário, quanto mais tematizado, mais ele fornecerá subsídios para a defesa e a valorização da reportagem investigativa.

É nesse ponto que chama a atenção a resistência ao debate. Para alguns jornalistas, esse tópico não passa de uma armadilha, uma casca de banana, um instrumento oportunista daqueles que pretendem regular - pela força do governo - o conteúdo do noticiário. Sim, pode até ser verdade. Admitamos que no meio da barulheira existam aqueles que se aproveitam do momento para criar um caldo de cultura favorável a que o poder enquadre o jornalismo - não subestimemos as megalomanias totalitárias que vão pela cabeça de uns e outros. Mas no fundamental o tema é mais relevante do que a intenção dos autoritários. Ele é de interesse público na exata medida em que a liberdade de expressão é de interesse público.

Muitos defensores da imprensa livre afirmam - com razão - que ela não pode ser pautada pelo Estado. Pela mesma razão, deveriam também afirmar que ninguém, em nome da liberdade de imprensa, deve pretender pautar o que os militantes políticos dizem ou deixam de dizer. Se dirigentes partidários lançam mão de palpites infelizes sobre a função dos jornais, o papel dos defensores da liberdade é desmontar esses palpites, mostrando que eles são infelizes. Insistir na mera desqualificação pessoal do autor do palpite é dar curso a um procedimento discursivo igualmente autoritário, que não contribui para que o público entenda melhor o jornalismo.

Uma imprensa que não se antecipa a compartilhar com a sociedade os seus critérios editoriais, os seus métodos e as suas condutas operacionais tem menos chances de ser defendida ativamente pelo seu próprio leitor. É ele, o público leitor, que tem direito à imprensa livre - é, portanto, a ele que a imprensa livre deve prestar contas. O cidadão tem mais apreço pelo jornalismo quando é convidado a compreendê-lo, a fiscalizá-lo e a sustentá-lo.

No mais, uma imprensa que não pratica a transparência tem menos autoridade para cobrá-la do Estado.


Extraído do sítio Brasil 247

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