23 abril 2013

O CAPITALISMO VOLTOU A INTERNET CONTRA A DEMOCRACIA - James Orbesen


“Vamos agarrar essa nova tecnologia de novo e transformá-la num filão para a publicidade.” As palavras são do diretor-presidente da Procter & Gamble, Edwin Artzt. Famoso por sua perspicácia nos negócios, Artzt, sempre guiado pelo lucro, disse a seus colegas capitães da indústria para voltarem suas atenções para algo novo, algo inédito, algo que precisava ser conquistado.

No início, a internet era um lugar diferente. Parecia um tempo de potencial ilimitado, quando se dizia que os velhos obstáculos à comunicação e à informação se derreteriam como manteiga no micro-ondas. As pessoas poderiam usar links de maneiras nunca vistas e tudo isso num espaço estritamente público e não comercial. Os analistas dessa época previam que os conglomerados da velha mídia seriam varridos pela chegada da Era Digital. Para os que olhavam para o futuro, a internet seria o espaço democrático, uma vez que seu princípio fundamental, o compartilhamento de dados pela rede, era intrinsecamente nivelador, livre e transparente.

Para muita gente que foi criança nas décadas de 80 e 90 – inclusive eu –, essa seria uma época para além da memória. Mas Robert W. McChesney lembra-se dela. Seu último livro, Digital Disconnect: How Capitalism Is Turning the Internet Against Democracy, olha para o desenvolvimento da internet, a estupefação inicial das empresas de mídia e telecomunicações diante de um espaço descoisificável, a provável conquista do ciberespaço e como a promessa inicial da internet não só foi subvertida, como se voltou contra o funcionamento de uma sociedade aberta e democrática.

Quantidade assustadora de dados

Apesar de todos os visíveis erros do capitalismo norte-americano – que McChesney assinala ao leitor, caso este tenha passado os últimos cinco anos dormindo –, o próprio sistema é, em grande parte, uma vaca sagrada. Na verdade, o capitalismo está tão entrelaçado com a sociedade norte-americana que, para muita gente, é quase um sinônimo da democracia. Numa época em que as corporações são pessoas legais e o dinheiro é equiparado à livre expressão, não é necessário um grande salto para compreender a intenção do autor. Como diz McChesney:

“E são poucos os que duvidam que o poder concreto, nos Estados Unidos, está nas mãos dos que têm mais dinheiro. É claro que os Estados Unidos contemporâneos não são um Estado policial e não têm gulags, mas têm uma variedade de poderosos estímulos materiais e culturais para incentivar uma política de não intervenção rumo ao capitalismo. Um hino ritualizado ao gênio do livre mercado é um bom lugar por onde começar.”

Talvez um dos ganchos mais irresistíveis do livro de McChesney seja seu projeto de se dissociar irremediavelmente da noção de que o capitalismo é essencial à democracia. Na realidade, poderia ser completamente antiético. McChesney cita a experiência ateniense, quando a democracia precedeu o capitalismo em quase 2 mil anos. Os dois não são um único nem o mesmo, apesar do que apregoam muitos arautos do livre mercado. Não exige um esforço tão grande dizer que o capital está sempre procurando o próximo grande negócio, algo que propiciaria um retorno prodigioso. Foi só uma questão de tempo até que interesses monetários fossem atrás de uma das áreas que cresciam mais rapidamente no final do século 20.

Poucas inovações tecnológicas provocaram ondas tão grandes quanto a internet. O simples acesso à informação é por si só notável, para não falar do aumento de conectividade entre indivíduos. O acesso à banda larga, o Wi-Fi e a proliferação de dispositivos móveis apenas aceleraram essa tendência. Os norte-americanos estão cada vez mais conectados por períodos cada vez mais longos de tempo. E essa tendência produziu uma quantidade de dados assustadora. McChesney cita Eric Schmidt, do Google. Schmidt avaliou que, se você registrasse digitalmente todos os documentos, textos e dispositivos culturais produzidos pelo ser humano desde o início dos tempos até 2003, precisaria de um computador com 5 bilhões de gigabytes de armazenagem. Em 2010, os humanos produziam esta mesma quantidade de dados a cada dois dias.

Ganância sem fim

É muita coisa para acompanhar. Infelizmente, não é de graça. A manutenção, o espaço do provedor e o desenvolvimento do software são apenas alguns dos custos para manter a massa absoluta da internet. McChesney conta uma história triste, mas cada vez mais comum. Aquilo que já foi aberto, público e, em grande parte, não comercial, tornou-se a fronteira do moderno capitalismo. Veja a internet como ela é, hoje. Parece extremamente distante dos sonhos utópicos de seus primeiros usuários e pioneiros, pessoas como o próprio McChesney. Não era para ser assim, diz o autor. Então, o que aconteceu?

Aconteceram os lucros. Depois de anos se alimentando de interesse público e sem fins lucrativos, a internet foi entregue a empreendimentos privados devido a intensos lobbies e em pouco tempo a coisa degringolou. A palavra-chave: rentabilizar. Manter a internet como um luxo, e não como uma utilidade. Convença os políticos a apoiarem uma legislação draconiana para direitos autorais. Acumule patentes. Anuncie por toda parte. Transforme a internet numa série de circuitos fechados, privados. Junto com as inúmeras infrações de privacidade pessoal, que os anunciantes pagam na hora – o que pede a pergunta cui bono? Dê apenas uma olhada nos lucros brutais registrados pela internet – empresas de telecomunicações e de tecnologia: Google, Apple, AT&T, Microsoft, Facebook et al.

A iniciativa privada não estava interessada em fornecer bens públicos porque, como diz McChesney:

“Esta situação não é necessariamente decorrente de uma conspiração, e, sim, de uma lógica perfeitamente visível e desavergonhada do próprio capitalismo. O capitalismo é um sistema baseado em pessoas que tentam obter lucros infindáveis por quaisquer meios que sejam necessários. Você nunca pode ter demais. A ganância sem fim – comportamento ridicularizado como insanidade em todas as sociedades não capitalistas – é o sistema de valores daqueles que estão no alto da economia. O ethos rejeita, explicitamente, quaisquer preocupações com complicações sociais, ou ‘externalidades’.”

Filtragem indireta da informação

Esta revelação não é inteiramente nova. Mas McChesney torna-a mais irresistível por ser tão recente. Talvez o verdadeiro impacto de seu livro seja detalhar um trajeto de eventos que ainda estão acontecendo. Descobrir que a AT&T, deliberadamente, cobra mais por seus serviços de dispositivos móveis e pela internet – fornecendo um produto de qualidade inferior – nos Estados Unidos do que pelos serviços prestados no exterior, é inquietante. É ainda mais inquietante por parecer que a construção dos aparelhos é tão desimportante que pouco, ou nada, ela é discutida por nossos líderes políticos. A ironia da coisa é que eu podia saber disso sem a trabalheira de McChesney. A internet, com todos os seus recursos, está logo ali.

Porém, espantosamente, o jogo parece já estar viciado contra a liberdade da internet: “...Os seres humanos conseguem visitar de modo significativo apenas um pequeno número de sites de uma maneira constante. O mecanismo de busca do Google incentiva a concentração porque os sites que não terminam na primeira ou segunda página de uma busca simplesmente não existem. Como disse Michael Wolff, na Wired, ‘os primeiros 10 websites responderam por 31% das visitas de página nos Estados Unidos em 2001, 40% em 2006 e cerca de 75% em 2010’. Em 2012, segundo o medidor de tráfego Experian Hitwise, 35% das visitas à internet vão para o Google, Microsoft, Yahoo! e Facebook.”

Esse tipo de estatística lembra-me uma passagem de Final Crisis, de Grant Morrison: “Já ganhamos. E eles ainda nem sabem!” Tornamo-nos ferramentas involuntárias de nosso confinamento. Essa filtragem indireta da informação é perigosa e leva ao ponto fundamental de McChesney sobre o potencial da internet para sabotar a democracia.

“Jornalismo retrospectivo”

Poucas profissões têm sofrido nas entranhas com a ascensão da internet como o jornalismo. A cada duas semanas, parece que surge uma história sobre demissões em massa numa redação ou a consolidação da mídia em empresas maciças, monopolísticas. McChesney enfatiza muito o papel que os jornalistas têm ao proteger o público da invasão dos interesses privados. Um povo informado, diz McChesney canalizando o apoio de Thomas Jefferson a uma imprensa livre e publicamente subsidiada, é a alma de uma sociedade democrática. No entanto, a internet veio e deixou os jornalistas esperando, justamente quando o público norte-americano mais precisava deles. Embora o declínio da imprensa escrita tradicional já viesse de décadas antes da internet, McChesney pretende que a confluência da consolidação da mídia e o enfraquecimento dos publishers independentes, através do declínio precipitado da receita publicitária, talvez seja a maior ameaça a uma sociedade democrática.

Os capitalistas localizam constantemente novos lugares para gerar lucros e, às vezes, isso implica pegar o que já foi muito e torná-lo escasso. É assim com a internet. A informação na internet é virtualmente livre, mas os interesses comerciais estão trabalhando para torná-la escassa.

Isto é preocupante porque se manifesta pela atual tendência das publicações fazerem menos investigação e mais reportagem. Devido aos profundos cortes de orçamento e ao controle pelos interesses das corporações – com seus dedos em muitos, mas muitos negócios diferentes –, as redações são forçadas a jogar o jogo. Ao invés de ir atrás da notícia para informar o povo, como deveria ser, os jornalistas só podem escrever a reportagem depois que os fatos aconteceram. Isto pode significar consequências trágicas. Quando uma mina de carvão afundou em 2010, na Virgínia Ocidental, causando a morte de 29 mineiros, descobriu-se a violação flagrante de inúmeros padrões de segurança. Duas denúncias foram feitas, pelo Washington Post e pelo New York Times, destacando a abrangência do crime. Entretanto, esse escândalo só veio à luz do dia depois que a mina já tinha afundado. McChesney cita Josh Stearns: “Estamos entrando numa era de ‘jornalismo retrospectivo’, quando algumas das matérias mais importantes da nossa época emergem depois do fato.”

Para os poderosos continuarem poderosos

Esta falta de vigilância jornalística sobre as atividades de autores e agitadores da internet é espantosa. Basta simplesmente avaliar os casos de Julian Assange, Aaron Swartz e outros ativistas pela liberdade da internet para ver como a internet se tornou fortemente controlada. A cumplicidade entre grandes empresas de tecnologia, telecomunicações e internet e políticos corruptos é óbvia. Está ocorrendo e, segundo McChesney, ainda sobraram algumas escassas fontes capazes de expor esse fato – de reverter o rumo, nem se fala.

Um exemplo deslumbrante pode ser visto na China e sua menina dos olhos, a “grande muralha digital”. O bloqueio da informação e o monitoramento de dissidentes ajuda a suprimir reformas para um regime genuinamente democrático. Mesmo nos Estados Unidos, informações pessoais são compradas e vendidas, sem consentimento, por terceiros não identificados. A maioria dos usuários nem sabe se ou quando está sendo rastreada. Seria um crime. Mas faz sentido para quem faz as regras da web porque irá gerar lucros. Diz McChesney: “Resumindo, o caminho racional para essas empresas – mesmo aquelas que atualmente não trabalham junto com os militares e as agências de segurança – é cooperar com o estado de segurança nacional. Qualquer outro rumo de ação seria uma ameaça à sua lucratividade. É óbvio.”

Portanto, quando McChesney denuncia que “as provas são claras: para as corporações da internet, a prioridade de direitos humanos e da força da lei está abaixo da prioridade de lucros” – e não se trata do emaranhado de uma teoria conspiratória. O contexto informal, fácil de abordar, que ele proporcionou, reforça sua percepção, não o desmerecendo como um acadêmico atípico. A internet, que já foi considerada um motor democratizante, poderia, na verdade, ser uma ferramenta indispensável para que os poderosos continuem sendo poderosos.

A opção de mudança

A internet chegou para ficar. Ninguém duvida disso. É útil demais, entretém demais, está enredada demais na vida diária para ser extinta. Mas já não parece ser uma dádiva dos deuses, como antigamente. “Em 1935, o editor da New Republic, Bruce Bliven, se descreveu como alguém que ‘considera a publicidade tão detestável que deseja que o rádio nunca tivesse sido inventado’. Cabe perguntar se a internet irá produzir ‘blivenistas’ modernos – ou se, como com as emissoras, as pessoas acabam aceitando sua degradação como uma coisa natural e quase não reconhecem, muito menos questionam, o que está acontecendo.” Considerando a quantidade de perversão que acontece por trás da cortina da internet, este não é um sentimento puramente descartável.

E o que McChesney oferece como solução? Existe esperança? Para ele, sim, e é uma mistura de inciativas democráticas que deve trabalhar dentro do sistema de forma a fazer retroagirem as preocupações capitalistas, assim como os subsídios públicos para um jornalismo proativo. A solução parece ideal, mas para mim é quase impossível imaginá-la acontecendo no ambiente hiper-partidarizado de hoje. Afinal, McChesney é um otimista auto-identificado. Como alguém que já cresceu com a internet, ao invés de ser testemunha de seu nascimento, acho que o fundamental não é o establishment, que já está nas mãos das corporações, e sim os pioneiros digitais, como Aaron Swartz, indivíduos ou grupos que estejam dispostos a virar as ferramentas da internet contra seus donos.

E McChesney admite que a internet continua sendo desenvolvida. Quem sabe o que será no futuro? Suas observações poderiam ser o último alerta do capitalismo tardio, e não a criação de uma Nova Ordem Digital.

Porém, uma vez que a internet ainda está em curso, o simples tamanho dela poderia, um dia, funcionar contra os interesses das corporações. Não é preciso ser um usuário excessivamente conhecedor para saber como superar os obstáculos entre os usuários e a informação. Embora um povo informado seja essencial ao funcionamento da democracia, talvez a maneira de avançar seja um povo informado sobre como a internet funciona, capaz de navegar na rede de uma maneira mais significativa e independente. O fundamental para a democratização da internet talvez seja uma geração de usuários que conheçam as regras do jogo, apoderando-se dela através do uso diário e das opções online. A empresa Kickstarter, apesar de monetizada, é um exemplo de democracia do tipo digital.

Só podemos esperar que todas aquelas horas incontáveis online compensem. Com o tempo, justamente aquelas pessoas consideradas intrusas, hackers ou escravas de seus laptops talvez venham a ser a melhor opção da internet para uma mudança significativa e democrática.

* Tradução: Jô Amado, edição de Leticia Nunes. Informações de James Orbesen [“When capitalismo consumed the Internet”, Salon, 14/4/13].

Extraído do sítio Observatório da Imprensa

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