Li recentemente o livro do Professor Carlos A. Lungarzo - doutor e pós-doutor, professor em universidades brasileiras e de fora do Brasil, militante defensor dos Direitos Humanos e estudioso da história política recente da Itália - cujo título da obra já revela a sua importância para o contexto político nacional: “Os cenários ocultos do Caso Battisti” (Ed. Geração, 2012, 367 pgs.). Um livro brilhante e transparente, que desvenda um cenário até então opaco, aqui no nosso Brasil..
O “Caso Battisti”, como se sabe, gerou uma polêmica extraordinária no país. Testou não só a capacidade combativa - no plano ideológico e político de uma boa parte da esquerda brasileira e dos democratas do país - mas também testou a qualidade jurídica e política da nossa Suprema Corte, no atual período, pois nossa Corte já havia julgado caso semelhante, concedendo o refúgio a militantes envolvidos com a luta armada nos “anos de chumbo” na Itália.
Não se tratava, no “Caso Battisti” - em nenhuma hipótese - de opor pessoas ou grupos políticos que defendessem, ou que fossem contra a luta armada, naquele período amargo da história italiana. Ou mesmo não se tratava de opor os que aceitavam ou aceitam métodos de luta revolucionária, aos que não os aceitam, em períodos de vigência de um Estado de Direito Formal. Tratava-se, na verdade, do exame de duas questões bem claras, num caso concreto: Battisti cometeu os seus presumidos delitos a partir de ações subversivas, com convicção ideológica e política, contra o Estado? Teria possibilidade de não ter um tratamento justo, se extraditado?
Sempre defendi, a partir de um estudo acurado do processo, com minha equipe no Ministério da Justiça (nesta matéria sob a coordenação de dois brilhantes secretários do MJ, o Secretário Executivo Luiz Paulo Barreto e o Secretário de Assuntos Legislativos, Pedro Abramovay), que qualquer Juiz que examinasse o processo - sem cegueiras ideológicas - veria que Cesare Battisti tinha sido condenado sem provas. O seu processo, na Itália, é um escândalo de erros formais e materiais, que só podem ser explicados pela crise de Estado, vivida pela Itália, naquela oportunidade.
A condenação sem provas, devidamente contextualizada, foi feita num ambiente de ações paramilitares de extrema direita e de extrema esquerda, no qual as ações terroristas de direita tinham um tratamento diverso, tanto por parte da Polícia, como por parte de um setor importante da Magistratura: fortes resíduos fascistas ainda estavam encravados no Estado italiano, sob o patrocínio da OTAN, no âmbito da Guerra Fria. Um quadro histórico, portanto, capaz de transformar a política em ações armadas. O livro do professor Lungarzo mostra, claramente, que esta era situação daqueles duros anos da história italiana.
Mas, vejamos também o que fica claro sobre as duas “perguntas-chave”, do processo.
Primeiro, o Ministro Francesco Cossiga, um dos grandes “capos” políticos da democracia-cristã nos “anos de chumbo”, reconheceu por escrito (sua manifestação está transcrita no meu despacho de admissão do refúgio) que Battisti era um “criminoso” político (pg. 111 do livro). Segundo: estava provado também - pela farta documentação existente no processo - que embora vigente o Estado de Direito Formal, na Itália daqueles anos, o que funcionava no cotidiano das políticas de segurança do Estado (no que refere à repressão não somente a atos antiterroristas, mas também à repressão aos grupos dissidentes esquerdistas) foi a “exceção”; ou seja: a tortura, assassinatos pela máfias fascistas, encobertas por parte do aparato de Estado (muitas impunes até hoje), seguidas de um controle midiático para incriminar, sempre, a esquerda armada, inclusive pelas ações terroristas provenientes das articulações da OTAN com parte dos serviços secretos italianos.
O livro descreve, minuciosamente, aquele período, apontando fontes de várias origens, não somente da imprensa italiana não controlada pela democracia-cristã, mas também da Anistia Internacional e de participantes daquele período. Descreve, apoiado em fontes documentais, o clima político de violência desmedida daqueles anos tristes da democracia italiana: as relações dos grupos fascistas com os serviços secretos italianos, os vínculos da máfia com o poder empresarial e político daquele tempo, a cumplicidade de uma parte da Magistratura italiana com a “exceção”.
(Esta “exceção” foi promovida, igualmente, pelo conúbio de uma parte significativa dos chefes da democracia cristã com o terrorismo de direita, que precedeu as ações violentas dos grupos comunistas dissidentes, cujo ápice foi o atentado à Estação de Trens de Bolonha, que matou trezentos inocentes).
O que inquieta e deve ser sempre rememorado é porque tudo isso não foi debatido pela mídia, que tratou de esconder a verdadeira natureza do processo e os seus aspectos materiais fundamentais, e porque o Ministro Cezar Peluso, no seu voto, distorceu ou omitiu todo o quadro histórico que poderia deslindar a situação “política” dos delitos imputados a Cesare Battisti. Ignorância? Má fé?
Não creio, sinceramente, que algum Ministro do Supremo tenha agido por ignorância ou má fé, embora não seja bom se impressionar com longas e catárticas citações nos seus votos, pois qualquer trabalho de fim de curso, nos dias de hoje, socorre-se do “google” e apresenta textos que parecem ser, mesmo, obra de juristas eruditos de renome. Na pós-modernidade fraudulenta, o que caracteriza a sabedoria e o conhecimento, é mais saber procurar na internet do que ter adquirido rudimentos de história e filosofia, para compreender os fenômenos sociais e jurídicos.
É óbvio que a ideologia do julgador sempre imprime um condicionamento na escolha das diversas possibilidades de manejo das leis e, exatamente por estar ciente disso, é que o ponto de partida metodológico do decidir - principalmente em questões desta natureza- não é a paixão por “um dos lados”, uma das “partes” políticas em confronto.
O ponto de partida metodológico deve ser não a luta de classes em estado puro - “proletários armados” versus parte da “burguesia mafiosa”, ocupando parte do Estado, mas os valores universais que estão em jogo. Por quê? Precisamente porque a contenda, como fato histórico concreto, pode não ser exatamente esta que descrevi. Então, as coordenadas para decidir devem ser buscadas nas conquistas universais do humanismo moderno e não nos “gosto” primário dos julgadores.
No caso concreto de Battisti o que estava em jogo, como disputa de valores, era o seguinte: a presunção da inocência; a presunção de que os grupos armados, naquela oportunidade, poderiam estar se insurgindo contra governos e Estados que “fecharam”, na época, a sua possibilidade de transformação dentro da democracia; a presunção de que os grupos de poder, no momento (no país requerente da extradição), estavam fazendo-o por meios ilegítimos. A presunção de que o governo que pedia a extradição no momento (lembremo-nos de Berlusconi) não demonstrava interesse na preservação do Direito Internacional Humanitário. Esta é a análise que faltou ao Estado brasileiro, no momento em que foi entregue Olga Benário ao nazismo. E era o que a mídia, associada às teses do governo italiano, tentou me impor na oportunidade.
Estes valores são valores democrático-liberais e estão sintetizados na grande rede de direitos que protege o cidadão do arbítrio do Estado e dos abusos de poder, que lhe são inerentes, em qualquer regime. Fundados nesta visão é que nós -no Ministério da Justiça, na mesma época do “affaire” Battisti - concedemos diversos refúgios a cubanos que estavam no Brasil, sem nos deixar influenciar sobre o juízo –inclusive diverso- que a nossa equipe tinha, na oportunidade, sobre o regime vigente em Cuba.
Lendo o livro do professor Lungarzo entende-se porque, naquela oportunidade, a mídia nativa (majoritariamente), mentiu de forma reiterada sobre a questão dos cubanos, baseada numa informação preliminar falsa do jornalista Elio Gaspari: era preciso desmoralizar o Ministro da Justiça, para legitimar uma extradição ilegal, que supunham já tinha maioria no Supremo. Divulgar mentirosamente que, ao mesmo tempo em que eu “dava refúgio a Battisti” - um “terrorista”- “entregava” os cubanos para a “ditadura castrista”, era formar uma aura de simpatia em torno do STF, para colocar Battisti à disposição de Berlusconi e sua máfia de poder.
Na verdade, ficou provado é que os próprios cubanos que voltaram a Cuba, assistidos pelo Ministério Público Federal e pela OAB, escolheram voltar. Depois declararam isso no exterior, com escassa repercussão na mídia brasileira.
A manipulação da informação no caso Battisti não é uma “questão menor” para a democracia brasileira: trata-se da questão da igualdade de meios, numa democracia formal, para dar efetividade a direitos fundamentais, como a liberdade de imprensa, que só tem sentido se for correlacionada com o direito concreto à livre circulação da opinião, sem o qual a liberdade de imprensa passa a ser um mero aparato de dominação destinado a divulgar as opiniões dos “donos” das empresas de mídia.
Em várias passagens do seu voto o Ministro Peluso, originário da magistratura paulista, que teve como mestres Alfredo Buzaid - o Ministro a Justiça da ditadura cujo maior feito foi encobrir as torturas cometidas nas masmorras do regime - e Miguel Reale, prestigiado filósofo do Direito, simpatizante das ideias de Mussolini e dos programas jurídicos “democráticos” do regime militar” - não só desdenhou da minha formação jurídica como manipulou as provas no processo, com o objetivo de extraditar Battisti e entregá-lo ao republicano governo Berlusconi.
Na primeira parte eu acho que ele tem razão, pois os meus mestres são outros: sou mais Ernst Bloch, Ferrajoli e Konrad Hesse, do que Buzaid e Miguel Reale. Quanto à segunda parte, manipulação das provas no processo de extradição, trata-se de uma questão de cultura geral. Recomendo ao agora ex-ministro que leia um pouco mais, informe-se um pouco mais, ouça um pouco mais pessoas que tenham formações intelectuais diversas daquelas dos seus mestres, para julgar mais de acordo com Kant do que com Mussolini: mais “valores” e assim menos contingência ideológica transmitida pelos mestres imediatos. Ainda bem que ainda tem Juízes em Berlim e o Brasil ainda tem Presidentes dignos deste nome.
Extraído do sítio Agência Carta Maior
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