Cada vez que o governo de Cristina Fernández de Kirchner tenta eliminar vícios e desvios que beneficiam os interesses de determinados grupos, aparece uma espécie de reservatório de blindagens que impedem o governo de desfazer certas aberrações. Fazem parte dessa blindagem os esforços permanentes, da parte dos meios de comunicação, de confundir a opinião pública. Desfazer um negócio turvo e retomar um espaço público é atentar contra o direito da propriedade, além de disseminar insegurança jurídica. O artigo é de Eric Nepomuceno.
Espaço. Eis aqui algo que parece vedado à presidente Cristina Fernández de Kirchner cada vez que seu governo tenta eliminar vícios e desvios que beneficiam os interesses de determinados grupos. De nada adiantam leis aprovadas por maioria no Congresso, de nada adiantam decisões judiciais: há uma espécie de reservatório de blindagens que impedem o governo tanto de desfazer certas aberrações.
A tudo isso, somam-se os esforços permanentes, da parte dos meios de comunicação, de confundir a opinião pública. Assim, ficou estabelecido que tentar desmontar um conglomerado que controla 56% da televisão paga num país onde mais de 80% dos domicílios recebem televisão a cabo ou por satélite é atentar contra a liberdade de expressão. Desfazer um negócio turvo e retomar um espaço público é atentar contra o direito da propriedade, além de disseminar insegurança jurídica.
O caso da área e das edificações ocupadas pela Sociedade Rural Argentina no valorizado bairro de Palermo, em Buenos Aires, é exemplar tanto da manipulação feita pela Justiça como da deturpação praticada pelos grandes grupos de comunicação, seguidos alegremente por seus pares brasileiros.
É verdade que o espaço – uma área pública de doze hectares de extensão, o Parque Três de Fevereiro – vem sendo ocupado pela Sociedade Rural Argentina desde 1910. Mas também é verdade que, até 1991, pertencia ao Estado argentino.
Para a grande exposição do primeiro centenário da independência do país foram erguidos, em 1910, os pavilhões entregues, em contrato de cessão temporária, à Sociedade Rural Argentina. Aliás, nada mais natural: era a época em que os grandes pecuaristas ditavam leis, regras e linhas políticas e econômicas.
A cessão temporária foi sendo prorrogada indefinidamente a cada ditadura, e os governos democráticos que surgiram nos intervalos entre um golpe e outro preferiram deixar tudo como estava.
Durante o século XX, e sem um só instante de distração, a Sociedade Rural Argentina soube estar, sempre alerta, ao lado de tudo que atentou contra a democracia e os interesses populares no país. A muito pouco nobre linhagem se confirmou com o golpe militar que, em 1976, instaurou o mais feroz terrorismo de Estado jamais conhecido antes: o ministro de Economia, que destroçou o que viu pela frente com tal de favorecer grupos especialmente escolhidos, chamava-se José Martínez de Hoz. O primeiro presidente da Sociedade Rural, fundada em 1826 – exatamente 150 anos antes – chamava-se Narciso Martínez de Hoz. Quarenta anos mais tarde, coube a um de seus filhos, José Toribio Martínez de Hoz, refundar a Sociedade Rural. Família coerente, como se vê.
Mas não foi por sua rígida tradição de condutas antidemocráticas que Cristina Kirchner resolveu recuperar a área.
Em 1991, o então presidente Carlos Saúl Menem, de nefasta memória, privatizou parque e edificações. Vendeu tudo, por decreto, à Sociedade Rural, a troco de 30 milhões de dólares (o Tribunal de Taxações da Nação havia avaliado em pelo menos 63 milhões de dólares; o perito avaliador da Corte Suprema determinou que o valor real rondaria a casa dos 132 milhões).
Mais que de pai para filho, foi negócio de avô para neto: a Sociedade Rural deu um sinal de três milhões de dólares, pagou outros sete milhões ao assinar a escritura, no ano seguinte, e se comprometeu a pagar dez parcelas anuais de dois milhões de dólares a partir de março de 1994. Nunca mais pagou um centavo.
É um escândalo tão escandaloso que até hoje estão sendo processados, além dos dirigentes da Sociedade Rural, dezenas de funcionários do governo Menem, a começar pelo próprio e por seu bizarro ministro de Economia, Domingo Cavallo, acusados de peculato.
Como impunidade é algo inerente aos poderosos de sempre, a Sociedade Rural até recentemente jamais se preocupou com sua dívida. Ao contrário: enquanto não pagava nada, tentou, sem pausa, violar todos os Códigos de Planejamento Urbano que encontrou pela frente. Passou a realizar até corrida de automóvel no espaço destinado a feiras e exposições. A área ocupada no bairro de Palermo, zona privilegiada da capital, tornou-se território estrangeiro. Em vez de imunidade diplomática, imunidade oligárquica.
A Sociedade Rural diz que não pagou o que deve porque as associações de bairro de Palermo entraram na Justiça e impediram que a área do parque fosse transformada num gigantesco centro comercial. Há anos a Procuradoria Geral do Tesouro tenta cobrar, de tudo que é jeito, o dinheiro devido, com as correções monetárias previstas em lei. A Sociedade Rural sempre consegue juízes complacentes que concedem liminares.
Em 2011 a procuradora-geral Angelina Abonna determinou a revisão do decreto presidencial assinado por Menem em dezembro de 1991. Cristina Kirchner levou um ano para acatar essa determinação. Fez isso baseada em jurisprudência da própria Corte Suprema argentina.
A Sociedade Rural recorreu e perdeu em primeira instância. Recorreu à famigerada Câmara Civil e Comercial – segunda instância, a mesma que beneficia o Clarín com liminares para que não cumpra a lei de meios – e ganhou. É a Câmara integrada por dois juízes que viajaram a Miami em mais de uma oportunidade às custas do grupo.
O argumento da Câmara é, no mínimo, curioso. Diz que uma venda feita pelo Estado não pode ser desfeita por decreto: o correto é recorrer à via judicial. É o avesso do que admitiu, anteriormente, a própria Corte Suprema.
Aliás, fica no ar uma pergunta: uma venda lesiva ao Estado sob todo e qualquer ponto de vista, pode ser feita por decreto, mas não pode ser desfeita por decreto?
Essa a história do que os grandes jornais de lá e de cá chamam de confisco.
Aliás, vale saber quem confiscou: o presidente que vendeu por 30 milhões um patrimônio público que valia pelo menos o dobro, recebeu dez e deixou por isso mesmo, ou a presidente que quer recuperar esse bem?
Extraído do sítio Carta Maior
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