O que aconteceu em Porto Alegre, no alvorecer do século 21, antiga referência da resistência ao Consenso de Washington? A pátria da democracia participativa esqueceu a vocação para a rebeldia? Por que o PT definha na Capital gaúcha? Essas perguntas desafiam os intérpretes e tiram o sono da esquerda. A inquietação é legitima diante da pior estatística eleitoral na trajetória da estrela. Após quatro mandatos, 1988 com 34,34% dos votos válidos (sem a figura do segundo turno), 1992 com 48,17%, 1996 com 54,59% e 2000 com 48,72%, o PT amargou derrotas consecutivas na cidade: 2004 com 37,62% dos votos, 2008 com 22,73% e 2012 com parcos 9,64%. Queda vertiginosa. A crise reflete na Câmara de Vereadores. Desde 1988, o partido não tinha bancada tão diminuta, cinco edis. A própria legenda agoniza, caindo de 27.418 para 17.338 escrutínios.
O quadro exige uma reflexão sem fulanização sobre as causas do descenso e as estratégias de superação. A situação embaraça 2014 e estimula o apetite dos aliados na órbita estadual. As razões para a espiral podem ser assim agrupadas:
Um. Com um recorte teórico lukacsiano, a explicação evocaria uma concepção de partido, que, pelo modo de funcionamento, presentificaria o futuro utópico por via do igualitarismo no tratamento que imanta as relações partidárias: entre “camaradas”, ontem, entre “companheiros”, hoje. O encanto despertado pelo PT, na origem, adviria daí. Mas se a intimidade do partido, ao contrário, deixa transparecer uma luta pelo poder mesquinha e sem justificativa plausível, a magia esvai-se. Traduzindo, o motivo central acharia-se nas acirradas disputas internas que eclodiram em 2002, sustentadas numa lógica autofágica, em que o companheirismo cedeu à insensatez. O eleitorado, decepcionado, então refutou a conduta simbolizada na renúncia do prefeito e impingiu a sequência de tríplice derrotas. A explicação soa como uma fábula moralista, tipo a raposa e as uvas.
A formulação desconhece os meandros da consciência dos eleitores de carne e osso, os quais decidem-se tendo por critério dimensões da vida social que extrapolam as considerações de ordem ético-moral para abarcar em seu julgamento a economia e sua percepção sobre as políticas públicas vigentes.
Se o definhamento proviesse do fratricídio na organização, teria-se que inverter a tese de Georg Lukács para concluir que quem antecipa a utopia vive sob a hegemonia cultural da direita, as grandes massas. Um paradoxo. Com efeito, a capacidade de interpelação do partido murcha quando o consenso interior trinca. Mas tal atinge em especial o ânimo dos ativistas e a possibilidade de unidade de ação partidária. Outras categorias conduzem a orientação eleitoral. Pesquisas mostram que a preferência pelo PT seguiu ao redor de 25% na cidade.
Dois. Com um recorte teórico gramsciano, o fator central recairia no descolamento militante do PT em face da sociedade civil. Ou seja, de seu afastamento dos movimentos sociais e das entidades de representação dos trabalhadores como decorrência de sua crescente institucionalização. A acusação de domesticação do petismo esquece que o período de maior radicalidade do PT coincide com a década de 80, caracterizada por estupendas mobilizações na agenda do Brasil. Sem estofo social, a tendência é resvalar no vanguardismo estéril. “Melhor errar com o povo do que acertar sem ele”, dizia um célebre russo. Não existe vanguarda política sem protagonismo social.
De resto, alerta Jeferson Miola (Carta Maior, 15/10/2012), o PT disputou o pleito com candidatos próprios em 87 dos 133 municípios com mais de 200 mil habitantes no país e em apenas 8 teve menos de 10% dos votos. Porto Alegre foi um deles. Os demais: Campina Grande/PB (1,17%), Vila Velha/ES (2,33%), Barueri/SP (2,36%), Imperatriz/MA (2,83%), Campo Grande/MS (4,87%), Ananindeua/PA (5,24%) e Guarujá/SP (5,24%). À medida que o processo de acomodação institucional do PT é um fenômeno nacional, era de se esperar performance semelhante em outros centros urbanos, o que não ocorreu majoritariamente.
O PT cresceu de Norte a Sul, aumentou o número de prefeituras, vereadores e eleitores. O sucesso de Fernando Haddad em São Paulo amplificou esse crescimento, fazendo de Porto Alegre a exceção à regra. Como resumiu Marcos Coimbra: “As eleições foram favoráveis ao PT... que reforçou suas bases municipais, com isso se preparando para melhorar o desempenho nas próximas eleições legislativas” (Carta Capital, 31/out). Há que olhar a árvore sem abstrair a floresta.
Três. Com um recorte teórico leninista/trotskista, sublinharia-se sobretudo as fragilidades organizativas do PT e a sua crise de direção política. A perda de organicidade remeteria às debilidades das zonais, com uma atividade muito aquém das exigências comunitárias por atender mais ao calendário do TSE do que à conjuntura política citadina. As insuficiências diretivas revelariam-se no distanciamento das instâncias partidárias frente ao conjunto dos filiados, no precário sistema de comunicação interativa com o assoalho partidário e na ausência de intervenção forte no debate da cidade. Faz sentido, em vários aspectos. Questões relevantes, a exemplo da privatização da área do Estaleiro Só com a edificação de espigões, na orla, embora forçassem a realização de um plebiscito, não suscitaram um movimento apto a dialogar em defesa dos espaços públicos de convivência. Não se gerou uma conscientização acerca da índole privatista que impulsiona as forças políticas que controlam a prefeitura. A resistência cotidiana concentrou-se na tribuna da Câmara Municipal. Não foi às ruas, nem às ciclovias.
Ok. Mas os itens relativos à textura da organização e à modorra da direção constam na avaliação de outras municipalidades de porte e, nem por isso, nelas, o balanço adquire contornos dramáticos. Vale lembrar que, em 2010, o PT venceu as eleições para governador em primeiro turno no Rio Grande do Sul, livrando grande vantagem em Porto Alegre: 51,04% (Tarso Genro/PT) contra 26,11% (José Fogaça/PMDB) e 17,57% (Yeda Crusius/PSDB). O instrumental político permaneceu o mesmo. Virtudes e defeitos não sofreram alterações, conquanto a voz das cédulas eletrônicas assumisse um timbre diferente para gaguejar a frustração e a tristeza da militância.
Quatro. Em um recorte teórico estruturalista, indicaria-se as transformações sócio-econômicas que tornaram Porto Alegre uma cidade de serviços, com uma significativa concentração de servidores ligados a órgãos municipais, estaduais e federais. Esses segmentos compunham a base social da agremiação, mas afastaram-se em função da Reforma da Previdência no primeiro mandato do estadista-metalúrgico. O escândalo do “mensalão”, em 2005, com meses de manchetes nos meios de comunicação que criminalizaram a totalidade do partido, fez refluir também o apoio dos setores intermediários, professores, estudantes, profissionais liberais, retirando da legenda o carisma que acompanhava-a desde a fundação. É verdade que no Distrito Federal, paraíso dos funcionários e das classes médias, em 2010, o PT emplacou o governador Agnelo Queiroz com 66,1% dos votos contra 33,9% de Weslian Roriz/PSC. Mas em Brasília o sobrenome do oponente era sinônimo de corrupção, o que matiza o contra-argumento. O funcionalismo público entra na contabilidade, sim.
As dificuldades sentidas em Porto Alegre são, parcialmente, provocadas pelo desencantamento e pela progressiva despolitização da política, na percepção daqueles setores. O pragmatismo rasteiro, as alianças demasiado elásticas para aumentar a competitividade eletiva e viabilizar a governabilidade, os privilégios acumulados pelos parlamentares em geral no exercício do cargo e rotinizados pelos representantes petistas, o denuncismo midiático de malfeitos implicando as instituições políticas e os políticos, com o agravante do espetáculo proporcionado pelo STF na Ação Penal 470, popularizada como “mensalão do PT”, tudo isso acarreta embaraços para o petismo na opinião pública. Mas os obstáculos vão além dos bolsões da sociedade, ora céticos.
Cinco. No mesmo recorte teórico, conviria examinar a base social do “lulismo”, formado pelo subproletariado que substituiu as classes médias tradicionais como sustentáculo do PT. A recondução de Lula em 2006 e o congraçamento de Dilma em 2010, tiveram o reforço dos extratos econômicos que ascenderam das faixas “E” e “D” para a “C”, configurando a “nova classe média”. O petismo seria agora tributário do lulismo, afiança André Singer (“Raízes sociais e ideológicas do lulismo”, Revista Novos Estudos, nov/2010). Como o processo de ascensão deu-se pelo consumo e não pela participação política, o segmento de 40 milhões de pessoas possui um enorme déficit de consciência. Por portar valores conservadores, está em disputa. Por estar centrado na esfera privada (família, amigos, igreja) e de costas para esfera pública (crê que a mudança de status deveu-se ao empenho individual e não às políticas governamentais), inclui-se no conceito de “alienação” esboçado por Cornelius Castoriadis. A equação consiste em transpor o lulismo para o petismo. Rezemos pela saúde de Lula.
Profissionais vinculados a empresas de diversos ramos, da telefonia à aviação, bem como supermercados e emissoras de televisão buscam informações sobre o comportamento, as expectativas, os interesses, o gosto estético desse universo populacional que adentrou o labirinto mercadológico massivamente.
Urge que o PT estimule debates, colha e cruze dados para qualificar a interlocução com a classe trabalhadora ampliada. Não logrou resultado nas eleições municipais em 2004, 2008 e 2012 no território da dupla Gre-Nal. Para usar uma metáfora, a população assinalada é para a esquerda brasileira o que Chiapas foi para o Zapatismo. No México, o subcomandante Marcos soube inovar a linguagem de contestação, absorvendo imagens da tradição cultural indígena e incorporando-as no discurso dirigido à humanidade. O PT saberá fazê-lo relativamente às camadas sociais emergentes?
Seis. Com um recorte teórico no sectarismo, que recenderia a Terceira Internacional, a opção pela candidatura própria - aprovada por unanimidade - seria responsável pela derrocada da hora. Pudera. Tendo o PT administrado sucessivas vezes a Capital; sete vereadores na legislatura em curso; dois expressivos deputados estaduais (Raul Pont, presidente da sigla no RS, e Adão Villaverde, ex-presidente da Assembleia Legislativa do RS), ambos com suporte preponderante na cidade; dois deputados federais em idênticas condições políticas, (Maria do Rosário, ministra da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, e Henrique Fontana, ex-líder do governo Lula na Câmara Federal); melhor pontuação entre os partidos no ranking de simpatia no alvissareiro Porto dos Casais; titularidade no Palácio do Piratini; três mandatos no comando do país; ícone da esquerda internacional graças à prática do Orçamento Participativo; como aceitar com tantos quesitos que abrisse mão da cabeça de chapa?
Sem mencionar que a aliança com o vencedor (José Fortunati/PDT) implicaria associar-se à oposição ao governo Lula/Dilma, DEM e PPS, que viam na garupa. Quanto à candidata Manuela d'Ávila/PC do B, sua credencial limitava-se ao suposto potencial de votos depois do expressivo sufrágio que conduziu-a ao Congresso, o que na comparação com a cimentada construção do PT não bastava para ajuizar a troca de posições na chapa. Ademais, o que não foi escrito pelos fatos rende-se a um idealismo filosófico sem correspondência com o real. Serve para elidir ou inventariar imaginárias culpabilidades e retroalimentar as diatribes domésticas. Mas é inútil para o esclarecimento coletivo, não prospecta soluções políticas. Que o atual presidente do Diretório Municipal, não reeleito à vereança, responsabilize as correntes internas (alma da democracia partidária) pelo saldo final negativo é sintomático da miopia que abate-se sobre o partido. “As tendências estão matando o PT”, estampou o prócer no sítio Sul 21. Por favor, que as tentações sectárias ruminem os versos de João Cabral de Melo Neto: “A aranha passa a vida / tecendo cortinados / com o fio que fia / de seu cuspe privado”.
Os agrupamentos explicativos acima trazem pontos relevantes e complementares à compreensão do enxugamento petista na metrópole onde irrompeu o Movimento pela Legalidade, em 1961, para evitar um golpe de Estado no Brasil. E onde o Fórum Social Mundial, a partir de 2001, viu renascer a esperança em um outro mundo, possível e necessário, após o dilúvio do neoliberalismo. As gavetas abertas nessa análise preliminar indicam uma reformulação no modus operandi do PT e convida-o a ousar experiências criativas coadunadas com as aspirações dos bairros, da juventude, das mulheres, dos afro-descendentes, dos que constroem-se como sujeitos da transformação. Não se trata só de azeitar a máquina partidária, mas de reinventar-se nos sonhos que fazem as múltiplas cidades que habitam Porto Alegre. Aprender antes de ensinar, é indispensável quando a representação política convencional, no formato de partido, já não possui o monopólio das ações públicas que batalham por paisagens sociais distintas.
Nenhum deus maligno espreita a esquerda portoalegrense. Nenhum destino avança inelutável e arrasador sobre as generosas ambições petistas locais, como se não houvesse possibilidade de reafirmar e consensualizar um programa republicano, democrático e socialista no Paralelo 30, com a adesão consciente da maioria da cidadania. A história está escancarada, não tem portas fechadas aos que trabalham em prol de uma sociedade sem opressores e sem oprimidos, sem exploradores e sem explorados, visando um Estado de Bem Estar Social sensível ao sofrimento dos pobres.
De acordo com Mário Pedrosa, “a arte, em todos os tempos, tem sido um meio prodigioso, e talvez, com a natureza, o único criador de realidades”. O saudoso militante da liberdade e pensador da cultura, não obstante, permitiria-nos acrescentar ao elenco dos criadores, a política. A política, com as ferramentas da luta ideológica somada à combatividade e ao discernimento dos lutadores sociais, também é capaz de criar novas realidades para os seres humanos. O PT deve instruir as mentes e estimular sempre a politização da política para reconquistar o coração de Porto Alegre.
* Luiz Marques é professor de Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Extraído do sítio Carta Maior
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