O golpe de Estado que tirou Lugo do poder no Paraguai serve de exemplo para confirmar algumas verdades históricas, habilmente escondidas pela cultura ideológica dominante em grande parte da nossa América Latina. O dogma do respeito à lei e à justiça (não se confunda justiça com Poder Judicíário) é o primeiro a mostrar toda a sua fragilidade, em conjunturas político-jurídicas como a que destituiu Lugo. A validade e a eficácia da lei têm características muito diferenciadas quando enfrentam as conveniências ilegais e injustas do capital, do chamado “livre”-mercado (?) e de grandes proprietários de terra.
“Direito adquirido”, “ato jurídico perfeito”, “coisa julgada”, aí somente são reconhecidos como tais se estiverem referidos e ancorados em patrimônio titulado por propriedade privada, por mais que esse direito esteja agredindo dignidades alheias, impedindo a inclusão de multidões no acesso aos bens indispensáveis à vida.
Entre muitos outros exemplos desse fato, no passado, dois gaúchos eleitos pelo povo, Brizola e Jango, amargaram a mesma experiência do presidente paraguaio, sob as mesmas causas: tentaram mexer na propriedade privada da terra, visando atacar uma das causas mais evidentes de injustiça social, pobreza e miséria que assola o Brasil e o nosso continente. O devido processo legal, considerado sagrado por juristas de nomeada, em casos tais, sai misteriosamente de cena.
Brizola, além de trazer para o domínio público uma companhia estrangeira que era dona da própria fonte de energia elétrica que servia o nosso Estado, desencadeou toda uma tentativa de reforma agrária sob atos administrativos como o tomado no famoso episódio do Banhado do Colégio. Jango, propondo uma desapropriação de terras em âmbito nacional nas margens das estradas federais, pretendia emancipar a terra do país de um domínio privado tão extenso em quantidade quanto rasteiro em qualidade social.
Ambos desencadearam a ira do coronelismo rural mais conservador e reacionário que, como aconteceu com Lugo, tomou essas políticas públicas como pretexto para o golpe de 1964 e a longa ditadura seguinte, sob a cumplicidade do poder militar e o apoio logístico dos Estados Unidos.
O dogma da “soberania do povo”, então, previsto igualmente em Constituições como a nossa, é o segundo a revelar sua incapacidade de ultrapassar a pura ficção, quando os fatores econômico-políticos que oprimem esse mesmo povo podem ser manipulados e a ele transmitidos como a sua própria salvação. No caso paraguaio, o fato de a Suprema Corte do país ter convalidado o golpe é lembrado como um argumento decisivo de preservação da democracia e da inconveniência de os países vizinhos votarem sanções contra o novo regime, como um editorial recente da Folha de São Paulo publicou.
Seria o caso de se inquirir esse juízo, então, em época na qual se discute tanto a Comissão da Verdade, aqui no Brasil, se decisões judiciais servem de aval para qualquer “democracia”. Aquelas que deram sustentação “legal” para os atos institucionais da ditadura imposta ao país em 1964 – mesmo guardadas as diferenças com o golpe paraguaio – pelo só fato de terem origem em tribunais, também garantiram a preservação da “democracia”? Os/as juízes/as dotados/as de um mínimo de humildade e consciência do real sentido de autoridade, sabem muito bem que o direito não se esgota na lei, conhecem as suas próprias limitações, os interesses ideológicos e culturais ocultos interessados em condicioná-los/as, como aconteceu com o próprio Supremo, no passado, sustentando, entre outras injustiças, a opressão escravocrata do império.
A razão parece assistir mesmo é aos jesuítas do Paraguai. Denunciaram toda a farsa presente em palavras solenes da lei, partam de onde partirem. Quando a interpretação dela reserva um peso bem maior para contemplar o capital e um peso bem menor para se opor aos seus excessos e abusos, tornando necessária a reforma agrária pretendida por Lugo, eles lembraram, de acordo com transcrição feita pelo IHU notícias do dia 30 de junho passado:
“O julgamento político a que foi submetido o presidente constitucional da República do Paraguai, Fernando Armindo Lugo Méndez, pode até ser legal, porém não foi nem legítimo nem justo”. Apoiados em Amós – um profeta que viveu muito antes de Jesus Cristo, convém lembrar – afirmaram: “Ai de vocês, que transformam as leis em algo tão amargo como o absinto e jogam ao chão a justiça! Vocês odeiam a quem defende o justo no tribunal e aborrecem todo aquele que diz a verdade.” (Amós 5, 7 e 10).
Brizola, Jango e Lugo, portanto, como outras lideranças da história remota e recente do nosso povo, mesmo sem serem santos nem anjos, testemunharam verdades muito incômodas para uma parcela de latifundiários presente no povo do nosso continente, cujo poder econômico-político, ainda quando reclama estar apoiado na lei, é uma das principais causas da injustiça social aqui presente e das agressões à democracia que o continente sofre, por mais que tudo isso lhe seja impingido como respeito devido a ela.
O absinto da pobreza e, até, da miséria, esse o nosso povo já prova demais. Se essa situação lhe for imposta pela lei, ele não tem outra opção legítima e justa que não a de desobedecer.
* Jacques Távora Alfonsín é Procurador do Estado aposentado, mestre em Direito pela Unisinos, advogado e assessor jurídico de movimentos populares.
<Extraído do sítio RS Urgente
<Extraído do sítio RS Urgente
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