Escritor de 75 anos viaja até 1946 para resgatar a sua primeira partida num estádio de futebol e lembrar que... havia esquecido o placar de verdade.
Miles Davis e o seu jazz emudecem no escritório aninhado discretamente abaixo da cozinha da espaçosa e tranquila casa de Luis Fernando Verissimo, para quem não existe música de fundo. “Música é sentar e ouvir”, garante. É no silêncio guarnecido pelos imponentes jacarandás do bairro Petrópolis, em Porto Alegre, que, a convite do GLOBOESPORTE.COM, o escritor de 75 anos, mais de 70 livros publicados e 5,6 milhões vendidos, desperta o seu jogo inesquecível.
Sempre discreto, Verissimo tem poucas referências ao Inter na casa (Foto: Lucas Rizzatti/Globoesporte.com) |
Obviamente, um Gre-Nal. Mas as obviedades imitam Davis e também se calam. Afinal, Veríssimo entra em cena. Na primeira vez em que pisou num estádio de futebol, ele conta, o resultado foi o que menos importou. Pode soar estranho, mas, para aquele menino de dez anos, fazia todo o sentido.
- O que eu me lembro é a emoção de estar no campo. Foi uma sensação. Só ouvia futebol pelo rádio. Ali, uma cerca pintada de branco nos separava dos jogadores. Dava para ver as feições, sentir a respiração deles. Eu estava vendo as cores do jogo, uma sensação completamente diferente - resgata. - Nunca vou me esquecer também do cheiro de grama quando entrei no estádio.
A cerca branca a que Verissimo se refere separava o gramado das arquibancadas do estádio dos Eucaliptos, casa colorada entre as décadas de 1930 e 1960 e demolida há poucos meses. Ali, o Gre-Nal de 1946 decidiria o Citadino. Se a lógica imperasse, o Inter venceria. Afinal, o clube vivia os áureos tempos do Rolo Compressor, time que recebeu tal alcunha por esmagar os oponentes. A partir de 1940, foram oito títulos estaduais em nove disputas.
Em 1945, um ano antes de Verissimo pisar nos Eucaliptos, o Rolo era hexa (Foto: Divulgação/Inter) |
No entanto, aquela tarde de 15 de setembro despejou lembranças nada animadoras na história colorada. Foi exatamente o dia em que o Rolo Compressor deu adeus a seu único campeonato, entre 1940 e 1948.
Farto pelas sucessivas derrotas, o Grêmio se preparou para aquele ano. Trouxe um pacotão de reforços do Vasco da Gama, criou o mascote Mosqueteiro e ainda passou a levar aos jogos uma faixa com o dizer “Com o Grêmio onde estiver o Grêmio" - enfim, medidas mobilizadoras, para elevar a combalida estima tricolor.
"Após uns anos, fui olhar nas estatísticas e vi que havíamos perdido. Achei curioso, engraçado" - Verissimo, sobre o Gre-Nal de 46
Deu certo. No Gre-Nal decisivo do citadino, o mesmo que até hoje Verissimo guarda o cheiro e as cores, o Grêmio venceu por 2 a 1 nos Eucaliptos, com dois gols de Cordeiro, uma das contratações vindas do Rio de Janeiro.
Cerca de 10 mil pessoas saíram arrasadas ao ver o time imbatível dos Eucaliptos ruir, mesmo que por 90 minutos. No entanto, para aquele garoto, pouco importava a derrota ou o tamanho daquele resultado para a história dos Gre-Nais. Valeu a experiência. Tanto que, inebriado pela atmosfera do futebol, o garoto Luis Fernando deixava o estádio certo de que o seu time vencera mais uma decisão.
Nada disso. Como se emergisse de um de seus tantos contos encharcados de ironia, o "jogo inequecível" de Verissimo vem carregado de uma boa dose de... amnésia.
- Após uns anos, fui olhar nas estatísticas e vi que havíamos perdido. Achei curioso, engraçado - diverte-se, 65 anos depois.
Verissimo "contraria" o pai
Não estranhe o começo "tardio" do garoto, conhecendo um estádio de futebol apenas aos dez anos, quando muitos o fazem aos seis, sete anos. Foi quando retornou com a sua família dos Estados Unidos. Até então, não havia tomado contato com o esporte. Aliás, também demorou a ver sua literatura transformada em livros. Seu primeiro, O Popular, é de 1973, lançado quando ele já tinha 37 anos. Se no caminho das letras andou ao lado do pai, Erico Verissimo (1905-1975), na questão clubística, rumou na direção contrária. Resolveu ser colorado.
Tesourinha (E), ídolo do Inter e de Verissimo, fez
história no Rolo Compressor (Foto: Memorial/Inter)
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- Ele (Erico), na verdade, era Cruzeiro (de Porto Alegre) e optou pelo Grêmio por causa das cores. Não era muito ligado em futebol - explica, voz calma, pausada, cada palavra pinçada como se fosse inseri-la em mais uma de suas crônicas. - Aos poucos, comecei a me interessar, e o Inter estava mais em evidência. O Grêmio carregava aquela antipatia elitista que não me agradava.
De certa forma, Verissimo não deixa de ter razão nas duas observações. Como já é sabido, o Inter dominou a década de 1940. Completamente sobrepujado pelo rival, o Grêmio ainda não aceitava atletas negros em seu quadro - o faria oficialmente apenas em 1952. Inclusive, o primeiro jogador negro após tal medida foi Osmar Fortes Barcellos, o Tesourinha. Peça-chave do Rolo Compressor, o ponta-direita havia deixado o Inter e atuado no Rio antes de vestir a camisa tricolor. É o ídolo maior de Verissimo, que lamenta até hoje a lesão que o tirou da Copa de 1950. Com ele, acredita, o Brasil teria evitado sua maior tragédia diante do destemido Uruguai de Obdulio Varela.
- Era o grande jogador gaúcho da época - recorda, sorriso no rosto.
Verissimo continuou perseguindo o aroma do futebol. A partir daquele jogo, tornou-se um “assíduo de arquibancada”. Se em sua estreia foi acompanhado pelos amigos da família Bertaso, ligada à histórica Livraria do Globo, depois deixou-se levar por suas próprias pernas ao bairro Menino Deus, para se debruçar sobre a cerca branca dos Eucaliptos.
E para ver o Inter vencer. Afinal, aquela derrota logo em seu primeiro jogo soou mais como um acidente de percurso. O clube que adotara seguiria com boa sorte. Muito por competência em campo, mas também um bocado pela providência do além.
A história conta que o Grêmio foi além das medidas terrenas para enfim dinamitar o rival naquele Citadino de 1946. Procurou um pai de santo, mas, ao final, acabou não pagando o tal do Homem dos Cachos, que ameaçou os tricolores. "Uma derrota para cada jogador", teria dito, em fúria. Boato ou não, o certo é que o Grêmio ficou sem vencer o Inter durante três anos - ou longos 17 Gre-Nais.
Pelé, Copas e... o "triunfo de Gabiru"
"O Inter é um time hipotético" - Verissimo, sobre os últimos anos do Inter
O garoto cresceu. Virou jornalista, músico, escritor - sem jamais deixar o Inter de lado. Mas também soube compartilhar a sua paixão. Acompanhou de perto, por exemplo, o nascimento de um rei. Em abril de 1956, dez anos depois de seu primeiro contato com o futebol, assistiu à estreia de Pelé, então aos 16, com a camisa do Santos. Escancarando de pronto seu talento e predestinação, ele fez o sexto gol da vitória de 7 a 1 do Santos em amistoso contra o Corinthians de Santo André. Verissimo virou fã daquele Santos cada vez mais mágico. Das cadeiras do Maracanã, testemunhou as finais de Mundial do clube paulista com Milan e Boca Juniors.
Cobre Copas do Mundo desde 1986, edição em que lamentou a eliminação do Brasil nos pênaltis diante da França nas quartas de final - mais uma partida marcante, revela. Pelo Inter, lista outras tantas. Fala com satisfação da final do Brasileirão de 1975 e o gol iluminado de Figueroa diante do Cruzeiro. Também menciona o tricampeonato invicto em 1979, com Falcão “em grande fase”. Mas reserva para o Mundial de 2006 a descrição mais demorada, como se o resgate daquele 1 a 0 sobre o Barcelona fosse um doce a ser saboreado com calma, paciência, em busca de um prazer prolongado.
- Foi a maior sensação - atesta. - Vejo como o triunfo do Gabiru, o grande herói que era criticado. Algo meio melodramático. Foi um momento de sonho. Antes do jogo, o sentimento era: “Se perder de pouco, está bom”.
Companheiro no jazz, o saxofone aguarda a vez
(Foto: Lucas Rizzatti/Globoesporte.com)
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O maior título da história de seu Inter Verissimo assistiu em casa. Há dez anos, dispensa os estádios. O que não o faz menos fanático.
- Acompanho a vida do clube pelo jornal, pela televisão. Tenho visto todos os jogos - adianta.
Antenado, Verissimo carrega certo pessimismo com o time de Dorival Júnior. Classifica-o como um “time hipotético”, que dizem ter, já há algum tempo, o melhor plantel, mas que não vê evolução.
- Tomara que engrene - torce.
Tamanha devoção ao Inter se dá mais no plano dos sentimentos e das palavras. Bem ao estilo de Verissimo, as referências físicas ao clube são discretas na casa comprada pelo pai em 1941 e que até hoje conserva intacto o escritório de Erico. Em meio ao livros de Luis Fernando, surge, como uma intrusa, uma flâmula de um dos Nacionais dos anos 1970. Mais uma amostra de que aquele cheiro de grama ainda está fresco na mente do escritor.
Fim do silêncio. A carioca Lucia, esposa de Verissimo, o chama para almoçar. É o único intervalo que costuma fazer enquanto se vê mergulhado em textos, o criador e as criaturas. Nunca para, das 9h até o início do Jornal Nacional, programa do qual não perde uma edição. O silêncio novamente insiste em ser atravessado. É Lucinda, sua primeira neta (tem três filhos), ouriçada com os preparativos de sua festa de aniversário. Na época da entrevista, faria quatro anos, no dia 4 de abril. A data em que nasceu o Inter. Nada é óbvio, mas tudo faz sentido na morada silenciosa, tranquila e colorada dos Verissimo.
Verissimo, 75 anos
Verissimo, 75 anos
_ Casado, três filhos, uma neta
_ 5,6 milhões de livros vendidos
_ Escreve semanalmente para os jornais O Estado de S. Paulo, O Globo e Zero Hora
_ Eternizou personagens como Ed Mort, Analista de Bagé e As Cobras
_ Também escreveu para a televisão (como Viva o Gordo
e TV Pirata)
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