06 junho 2012

RESISTIR: O MERCADO NÃO FARÁ ISSO POR NÓS - Saul Leblon


O governo Dilma acelera o passo na direção que em Lula enveredou a partir da crise de 2008: colocar o mercado, a banca e os recursos públicos a serviço do país para protege-lo do duplo naufrágio europeu-norte americano. 

O vagalhão provocado pela submersão de 34% do PIB mundial ruma de encontro às economias da Ásia e América Latina em duas ondas sobrepostas: a retração em cadeia do comércio internacional, onde a singular coordenação do FMI recomenda que todos os países exportem mais e importem menos, o que fará todo sentido quando a Terra estreitar laços econômicos com Saturno; e a fuga de capitais para qualidade e segurança. 

Títulos alemães e americanos mesmo pagando juros negativos tem a preferência da manada. De toda a manada, razão pela qual pagam cada vez menos. Papéis do Tesouro dos EUA com prazo de 10 anos, por exemplo, valem 1,4% ao ano para uma inflação da ordem de 2%. 

Trata-se de uma corrida contra o tempo; deles e nossa. Os capitais aceitam receber menos do que aplicam porque precificam uma deflação de ativos superior a essa perda. A liquidez que tem em mãos -- direitos teóricos sobre a riqueza,como ações de bancos europeus, por exemplo--, não vale o que está impresso na face. 

A bolha que começou a explodir em 2008 no mercado imobiliário norte-americano tem uma verruga correspondente dentro de cada um desses papéis: a montanha somada de todos eles alcança 10 vezes o PIB mundial; as espirais derivadas desse Everest equivalem a 460 vezes a riqueza global tangível. Então é preciso correr. A dança das cadeiras deixará trilhões sem assento quando a música parar e a batuta da Espanha e da Grécia já cortou o ar. 

Dilma tem pouco tempo, mas dispõe paradoxalmente de mais espaço que Lula teve para agir. O tempo é dado pelo vagalhão econômico internacional que avança aos saltos e pode disparar se a banca afundar na Espanha ou a Grécia romper com a ortodoxia dia 17; já o espaço é uma variável política. Dilma tem um espaço de legitimidade para agir inversamente proporcional à credibilidade do discurso neoliberal. 

Colunistas órfãos reclamam da ausência de oposição no país e torcem para que Veja acerte ao menos uma parceria contra o PT --seja com Cachoeira, Serra ou Gilmar Mendes. Iludem-se ao achar que as coisas mudariam radicalmente assim.O buraco é mais fundo. A lezeira da oposição deve-se trinca estrutural em seu alicerce ideológico.

Foi isso que propiciou a margem de manobra para Dilma romper a lógica rentista na esfera dos juros e alterar o lacre inviolável que a poupança assegurava à banca. E nada aconteceu; ou melhor, os depósitos em poupança aumentaram na semana seguinte.

Em março de 1999, no governo FHC, a taxa básica de juro do país, a Selic, era de 45% (21,6% em termos reais); hoje é de 8,5% (uns 3% reais). Se ficar em 8%, em média, até 2014, o Estado brasileiro terá economizado R$ 56 bilhões --uns três anos de Bolsa Família. Dilma está tratorando a banca privada para obriga-la a reduções correspondentes no spread e nas tarifas que subiram 17% no primeiro trimestre e renderam mais de R$ 17 bilhões em 2011. O emparedamento conta com a força do setor financeiro estatal que saiu na frente no corte das taxas e na expansão do crédito: em abril a oferta de crédito na esfera pública foi 25% superior a abril de 2011; nas instituições privadas a variação foi de 13%.

O estímulo do crédito não é desprezível, mas insuficiente. As vendas do varejo vitaminadas também pelas desonerações de IPI crescem há três meses seguidos; em maio registraram o maior salto mensal desde agosto de 2007 (4,1%). Nem por isso, o país está protegido da retração mundial. A contaminação do efeito manada aqui se dá pelo decisivo canal do investimento. 

O país cresceu apenas 0,2% no primeiro trimestre e uma das razões --além das perdas na agricultura por razões climáticas--, foi o baixo desempenho da formação bruta de capital fixo ( mede o acréscimo de galpões e máquinas no sistema produtivo). A participação dessa alavanca de crescimento ficou em 18,7% do PIB no primeiro trimestre, contra 19,5% no mesmo período em 2011. 

A natureza pró-cíclica do capital privado, uma espécie de 'maria vai com as outras' que acentua e acelera o ciclo de queda assim como turbina de forma irresponsável a fase de alta --bolhas financeiras são a expressão dessa lógica ciclotimia-- explica em grande parte essa retração e deixa uma advertência no ar. 

A retomada vital do investimento -- única variável capaz de engendrar um cinturão de resistência efetivo à crise mundial-- não virá espontaneamente dos mercados. Eles não farão isso pelo Brasil, como não fizeram pelos EUA nos anos 30 e não fazem hoje pela Europa, em que pese a insistência de Ângela Merkel na receita da 'contração expansiva', baseada em arrocho nos direitos e salários 'para abrir espaço à iniciativa privada'. O Estado terá que assumir um papel hegemônico na retomada do investimento brasileiro se o governo quiser de fato proteger o país do vagalhão em curso.

Turbinar o investimento público implica, entre outras medidas corajosas, reduzir o superávit destinado ao pagamento de juros ao rentismo ocioso; mas, também, simplificar os trâmites para a licitação transparente de obras públicas e mesmo assumir a coordenação direta das empreiteiras.

O dispositivo midiático conservador perdeu a prerrogativa de impor interditos, mas não perdeu a pose. Os mesmos editorialistas que festejavam o desmonte promovido pela agenda do Estado mínimo na era tucana reclamam agora dos atrasos nas obras do PAC decorrente, em grande parte, de um cerco asfixiante de burocracia e preconceito que ajudaram a implantar. O Estado brasileiro, da forma como se encontra manietado, está programado para não fazer. Dilma que afrontou e venceu dogmas tão poderosos como o dos juros tem credenciais e espaço para romper mais esse torniquete. Só não tem muito tempo para decidir.

Extraído do sítio Carta Maior

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